quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Bloco de notas



Se você olhar ali, bem no final da rua, com o pé esquerdo escorado na árvore e o fone nos ouvidos encontrará Henrique. 
Nesse momento, Henrique é um garoto de vinte e poucos anos como outro qualquer, exceto pelo fato de ser um pouco tímido e de sempre carregar consigo o que ele chama de bloco de notas, o que lhe rendeu o apelido de Doug. 
Não era raro ver Doug rabiscando alguma coisa no seu inseparável companheiro de viagem. Às vezes um desenho, às vezes um verso, às vezes uma simples frase, mas fato é que ninguém sabia ao certo o que realmente constava naquele tesouro pessoal. 
Certo dia, durante um acampamento que decidirá fazer com alguns amigos, Henrique levantou durante a noite para ver e registrar as maravilhas naturais noturnas. Seguiu uma trilha e logo à frente entrou em um trecho de mata não tão fechada. 
Para sua surpresa, deparou-se com um casal de desconhecidos transando à luz tênue da lua, sobre uma pedra lisa e rodeados de árvores frondosas. Por lembrar do consagrado "Sonho de uma noite de verão" ou pelo simples fato de achar a cena uma perfeita conexão entre o homem e a natureza, Henrique começou a registrar aquela imagem em seu bloco. 
Tudo estava indo bem, até que Henrique, ao tentar dar um passo pra conseguir um ângulo cuja iluminação estivesse mais apropriada, escorregou na serrapilheira chamando a atenção do casal. Eles pararam logo. O homem se vestiu às pressas, da melhor maneira possível, e foi tirar satisfações com o que ele imaginava ser um maníaco ou tarado. 
Vendo o bloco e o lápis nas mãos de Doug e evidenciando que sua massa muscular era bem maior que a do nosso herói, o homem nem deu tempo para que ele se explicasse, e foi logo aplicando-lhe uma bela surra. Entretanto, o que doeu mais para Doug foi quando o homem pegou seu bloco de notas no chão dilacerando-o em pequenos pedaços. 
Doug então chorou, e, indiferente aos sopapos que ainda estava recebendo e ao sangue que corria do seu lábio inferior e supercílio esquerdo, ele começou a recolher os pequenos pedaços de papel espalhados na folhagem e colocar nos bolsos, na esperança de recuperar seu tesouro. 
Irritado com o fato de Henrique não se importar com a surra que estava aplicando, o homem aumentou a força dos golpes. Henrique tentava concentrar sua atenção nos pequenos pontos brancos espalhados naquele mar de folhas secas. Porém, em um determinado momento, a paisagem começou a rodar. Tons de vermelho, azul escuro e negro apareceram em sua visão, ofuscando os pedacinhos de papel. Pouco depois ele caia desfalecido naquele cenário outrora perfeito... 
A próxima lembrança de Doug se remete a dois dias após esse incidente, quando ele acordou numa cama de hospital um tanto dolorido e com sua aflita mãe à cabeceira. Ele esperou que sua mãe terminasse as carícias e logo perguntou sobre seu bloco de notas, ao que ela respondeu que não fora encontrado e que as folhas de árvore e pedaços de papel encontrados no seu bolso haviam sido descartados. Após tal notícia uma expressão melancólica e desacreditada tomou conta de Henrique, e ele não mais pronunciou nenhuma palavra até o dia seguinte. 
Sabendo que ele havia acordado, os amigos que o acompanharam no acampamento e o levaram ao hospital foram visitá-lo. Eles tentaram conversar e interagir com Henrique, que parecia alheio a tudo e não esboçava nenhuma reação. Preocupados, os amigos acharam melhor se retirar para que ele descansasse e se recuperasse melhor, mas não sem antes deixar na mesinha ao lado uma folha que, segundo eles, estava na mão de Henrique quando foi encontrado inconsciente na mata. 
Quando sua mãe voltou, observou aquela folha na mesa sem entender muito bem o que significava e soltou um comentário meio pra si mesma: "parece uma folha do bloco do Rique". Aquilo pareceu despertar algo em Henrique que, ainda apático, esboçou a primeira reação desde então, estendendo o braço como num pedido para ver do que se tratava. 
Ao ver aquele pedaço de papel, um olhar de surpresa tomou conta do garoto, e em questão de instantes ele começou a chorar como uma criança que encontrara seu tesouro perdido. Ele não lembrava de ter feito aquilo, mas naquela folha, certamente pertencente ao seu bloco destroçado, repousara um resumo de tudo o que ele já havia feito. Desenhos em miniaturas, quadrinhos, frases de seus poemas e muitas de suas ideias se espremiam para caber na frente e no verso daquele pequeno papel. 
Ninguém poderia ter feito aquilo além dele... O que será que teria acontecido naquele meio tempo? Teria acordado e feito tal miscelânea? Ou seria fruto de alguma força sobrenatural inexplicável? Para Henrique não importava, bastava a sensação de retorno a vida que havia sido traga. Embriagado num choro de alegria, ele se atentou para a única parte que nunca havia desenhado: um rosto sorridente bem no estilo de seus traços com um balão de quadrinhos escrito: agora viva! 
Henrique se recuperou rapidamente após esse acontecimento, e em pouco tempo estava de volta a sua vida normal, apenas com uma discreta cicatriz no supercílio esquerdo. Disse a todos que havia sido atacado por um homem drogado e encapuzado naquele dia e que a folha pertencia ao seu desaparecido bloco de notas. Desde tal acontecimento, Henrique parou de usar o bloco de notas, se tornando uma pessoa mais sociável e mais segura de si, entretanto, ele guardou em uma de suas gavetas aquela relíquia e constantemente a admirava. 
Cerca de um ano se passou. 
Um dia, logo após admirar aquela folha misteriosa, Henrique caiu no sono, sonhando com o dia em que fora atacado. Ele estava na mata, observando a mesma cena com o bloco nas mãos. O bloco estava vazio, mas a perfeição daquele retrato o obrigava a desenhar. Era só ele não se mover! O desenho ia ficando pronto enquanto o casal continuava seu prazeroso ato. No último traço a felicidade de Henrique fora ameaçada, pois o casal olhou diretamente em sua direção. Henrique pensou em correr, mas suas pernas não o obedeciam. O medo tomava conta de si enquanto o casal se vestia calmamente o observando. Eles se aproximaram juntos, e o homem estendeu a mão como que pedindo o bloco. Henrique não queria, mas entregou. O casal observou o desenho por um tempo, até que uma lágrima escorreu dos olhos da mulher e um sorriso tomou conta do rosto do homem, que devolveu o bloco para Henrique com os seguintes dizeres: "Agora te entendo. Você me perdoa?". Atônito, Henrique disse que perdoava, e o homem lhe deu um abraço. Logo depois iniciou-se uma chuva de dinheiro e um disparo se ouviu. Instantes depois o homem caia numa serrapilheira de cédulas com uma marca de tiro no meio da testa... 
Henrique acordou suado e assustado. Que pesadelo horrível fora aquele! O garoto se levantou para lavar o rosto e beber água, e logo voltou a dormir. No outro dia, quando acordou e foi arrumar sua cama, observou que havia algo embaixo do travesseiro, como uma folha de papel. Impossível descrever a reação de Henrique quando viu que aquele papel era de seu bloco de notas e continha o desenho perfeito, como ele fizera em sonho algumas horas antes... E como se não bastasse, no verso havia um rosto desenhado juntamente com os seguintes dizeres "Obrigado, nos veremos em breve!". O rosto parecia familiar, e bastou Henrique pegar o papel da outra ocasião para perceber que era o mesmo rosto, aquele que ele jamais houvera desenhado. 
Não fazia o mínimo sentido! Absolutamente nada que ele pensava fazia sentido! Alguma coisa muito estranha estava acontecendo e ele, definitivamente, não estava muito curioso para saber o que era, só esperava que parasse por ali, pois já estava começando a assustar-se. 
Era melhor esquecer aquilo tudo e continuar vivendo normalmente. Henrique guardou agora as duas folhas em sua gaveta e foi tomar o café da manhã. Lendo o jornal que acabara de ser entregado, uma matéria o chamou bastante atenção: "Assalto a banco acaba em morte". Mais impressionante que o título, foi a foto 3x4 do homem que havia sido morto com um tiro na cabeça. Sim, o mesmo que o agredira e que ele havia acabado de sonhar. Henrique engasgou e quase sufocou-se quando deparou com a notícia. Não fosse sua mãe, talvez essa história terminaria aqui. 
Confuso e desorientado, Henrique decidiu espairecer um pouco. E porque não no mesmo local onde tudo ocorrera? Lá era tão bonito! Andou um pouco e decidiu visitar o local exato dos acontecimentos. Um local belo, mas não tão charmoso quanto era durante a noite. Revirou a serrapilheira e achou um ou dois pedaços de papel borrados, sem muita importância. Optou subir na pedra lisa e relaxar. Concentrou todas suas energias em um único pensamento: "Não quero mais me envolver!". Aos poucos relaxou e adormeceu na pedra. Algumas horas depois acordou bem mais disposto e menos assustado e voltou a sua vida. 
O tempo passou. Henrique acabou se tornando um arquiteto bem sucedido, se casou com Karine, sua bela ruiva, e teve um casal de filhos. Tranquilidade, garra e determinação eram algumas de suas características marcantes e todos o viam como um verdadeiro homem de fibra! 
Certo dia sua filha, já no auge de sua juventude e um tanto independente, anunciou que estava namorando um garoto chamado Yan, e convidou os pais para um almoço na casa de seu amado. 
Quando chegaram na casa, Henrique e Karine ficaram esperando na sala de estar até a mesa ser posta e os pombinhos, que estavam presos no trânsito, chegarem. Sem um anfitrião, Karine começou a observar as fotos espalhadas pela casa. Henrique fez o mesmo. Primeiramente viu a foto de uma mulher e uma criança, provavelmente a mãe o atual namorado de sua filha. Mais algumas fotos da mulher e algumas fotos do menino um pouco maior. Algo parecia familiar... Então, Henrique ficou estupefato quando viu uma foto antiga do casal e reconheceu o homem que havia o agredido. E claro, aquela mulher era a mesma que estava com ele aquele dia, como poderia esquecer? 
Ainda atônito com o que acabara de ver, um barulho na porta anunciou que o casal chegara. Henrique ficou boquiaberto. Aquele rosto que ele nunca desenhara estava ali na sua frente, do lado de sua filha. Vivo, humano! Seria possível? 
Durante o jantar, onde também estava presente a mãe de Yan, Henrique foi levantando evidências de que aquele garoto era realmente filho de seu agressor do passado e, pela idade do menino, era bem capaz que a gravidez tivesse acontecido naquela época. E era tão similar àquele desenho misterioso... Difícil de acreditar! 
Talvez a reação natural de Henrique seria odiar aquele garoto, ser contra o relacionamento ou qualquer coisa o tipo, mas não era isso que ele sentia. Ele tinha um apreço e um carinho grande por aquele ser que só conhecera por desenhos, como se fizesse parte de sua história. 
O jantar foi super agradável, e todos aqueles receios que os pais costumam ter a respeito dos relacionamentos dos filhos se dissiparam instantaneamente. Henrique nada comentou sobre suas impressões. Ninguém jamais saberia o que se passara com ele, era uma estória estritamente pessoal e fantástica demais para que qualquer um acreditasse. Mas para a sua surpresa (talvez a terceira grande surpresa que tivera na vida), durante as despedidas, Yan levou Henrique para um canto e disse as seguintes palavras: 
- Demorou, mas finalmente nos encontramos. Obrigado por ter me dado a vida, garanto que não irei decepcioná-lo! 
Henrique nada respondeu. Apenas deu um sorriso esperando a hora que abriria os olhos, acordando do que agora tinha certeza ser um sonho fantástico. Piscou vagarosamente para facilitar seu despertar. Porém, ao abrir os olhos novamente, estava ali, naquela mesma cena.
Henrique então, ainda calado, abraçou seu futuro genro com bastante afeto. Ao final das despedidas, ele a mulher e a filha partiram. 
Enquanto sua mulher dirigia, Henrique olhava para a Lua e sorria como um menino. Um daqueles sorrisos que parecem vir da alma, como dizem os menos céticos.
Naquele dia, Henrique (sim, nosso Doug) deitou em sua cama não em busca de explicações para tudo aquilo, mas com uma incrível sensação de desejo realizado. 
Até hoje, alguns podem perguntar porque Henrique carregara por tanto tempo aquele bloco de notas. E a verdade, é que ali ele realizava um sonho, temperando a monótona e lógica realidade com intensas pitadas de fantasia esperado o momento que ambas pudessem entrar juntas no palco para encenar a peça da vida, e, definitivamente, aquele momento havia chegado!