sábado, 5 de julho de 2014

Areia da vida

Rabiscando mais um protótipo de estória, senti a dor. Parecia fulminante, e por obra do destino estava sozinho em meu escritório. Lá fora ruídos de foguetes e vuvuzelas, aqui dentro, uma roda cinematográfica começou a girar...

De repente me vi aos 4 anos. Uma das lembranças mais antigas que me recordo ter. O pirulito colorido caído no chão e eu chorando compulsivamente por aquele infortúnio. Não queria outro. Não queria afago. Só queria sentir a dor da perda. Peguei meu finado pirulito e o coloquei abaixo de um montinho de terra num terreno baldio ao lado da minha casa, afinal, haviam feito isso com seu Joaquim do 33 na semana passada, e deveria ser algo bom!

A essa altura do campeonato sou eu quem devo estar prestes a ser coberto por sete palmos de solo... Quando essa imagem se apodera da minha consciência tomo um susto! Aquela cena da infância se vai, perdida entre as brumas doloridas do sangue que já começa a correr preguiçosamente por minhas veias.

Ainda assim consigo me recordar daquele fatídico 13 de abril. Seria meu primeiro beijo, não fosse aquela monstruosa espinha amarela que apareceu no canto inferior do meu lábio direito. Parecia vinda de outra dimensão e se instalado ali desobedecendo toda teoria da relatividade de Einstein. Independente de sua origem e do inútil esparadrapo que tentei colocar por cima dela, Stela não teve coragem de chegar nem a um metro de mim, e aquele que seria o primeiro beijo nunca aconteceu. Ao chegar em casa, assassinei com gosto aquele extraterrestre no meu rosto. Percebi que não era mais criança ao observar meu sorriso cruel no espelho ao fitar aquele fino filete de sangue escorrendo por entre os primeiros lanugos de meu queixo...

Numa pontada de dor, como se meu peito houvesse sido rasgado por uma flecha envenenada, tentei abrir meus olhos e percebi que já tinha caído da minha fiel cadeira e me encontrava literalmente agonizando no chão. Sem precisar procurar lembranças, elas vieram...

Foi tarde, aos 21 anos. Estava nervoso. Não sabia o que faria nem tampouco qual seria a sua reação. Mas tudo levava àquele momento. Meus pais viajaram por alguns dias e lá estávamos nós dois. O filme mal acabara e já havíamos ultrapassado todos os limites que outrora conhecia. Iria acontecer. Estava acontecendo. Cada curva revelada acelerava meus batimentos e me enchiam de uma vontade instintiva de prosseguir. A nudez não parecia mais ser criminosa. Aos poucos os dois corpos entravam em sintonia até se tornarem um só. Momentos que pareciam eternos se sucederam vencendo a densa neblina da virgindade e relevando um paraíso em uma explosão de fantasia. Foi no momento que descobri mais uma das razões inexplicáveis da vida...

Porém agora nada mais iria conseguir acelerar meu coração novamente. Eram meus últimos momentos... Como ficaria Paulinho depois que eu não passasse de lembranças?

Ah, Paulinho... Chegou na minha vida através de uma tragédia e mudou meus planos de ser um eterno solitário. Ele tinha apenas 1 ano quando minha irmã e seu marido foram vítimas daquele caminhão desenfreado. Como poderia aquela criança ter sobrevivido? Um inexplicável mistério que amoleceu meu coração e brotou em mim a semente da paternidade. Lutaria por aquela criança, e faria por ela o melhor que pudesse. Noites mal dormidas, inúmeras irritações e a evolução de um problema cardíaco não foram nada diante do amor que aquele pequeno ser me fez sentir enquanto ia crescendo. Sempre me chamando de pai e renovando todo minha paixão pela vida! Agora com 20 anos, no segundo período de sua faculdade de Direito no Rio Grande do Sul, já dava ares de independência e maturidade, mas nunca deixaria de ser meu eterno meninão.

Olhei para ampulheta na mesa e percebi que os últimos grãos de areia iam caindo. E com eles, ia se esvaindo minha vida. Diversas cenas ainda foram projetadas na tela desse filme enquanto me restava consciência. Tantas que fica até difícil descrevê-las...

Até que veio o instante final. Senti que um sorriso sutil se desenhou em meus lábios. E ele dizia pro mundo: EU VIVI!