segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Lágrima solitária

Era primavera. Mais uma vez admirava pela janela o mar de ipês floridos que coloriam a cidade, enquanto me deliciava com um bombom que acabara de ganhar como presente de aniversário atrasado.

Uma cena corriqueira, confesso, já que sou um admirador nato da natureza, mas dessa vez havia algo diferente. Mais do que me fascinar com aquela paisagem, estava tomando coragem para ler o cartão que acompanhara o presente.

Era um simples envelope verde escuro, com um adesivo de morango que servia como um lacre sutil. Nada amedrontador, porém estava com receio do possível resultado do conteúdo ali presente sobre as minhas emoções.

Acontece que esse presente e o respectivo cartão tinham vindo de uma pessoa que em pouco tempo se tornara muito especial para mim e que, apesar de demostrar todo seu carinho nas sutilezas do dia-a-dia, nunca havia tido a possibilidade de declarar isso em palavras!

Palavras! Ah, as palavras! Elas são tão tocantes, tão poderosas e tão fabulosas! Não é à toa que me arrisco como um pseudoescritor! O impacto que elas tem sobre mim é avassalador!

Alguns bombons mais e a certeza de que não poderia reencontrar minha benfeitora sem dizer minhas impressões sobre os escritos, me deram a coragem suficiente para abrir e encarar as três folhas de carta/cartão que ali estavam.

O que dizer a respeito? Difícil! Quase impossível! Mas tentarei relatar de forma pelo menos inteligível, entretanto não posso garantir que conseguirei...

Logo na primeira impressão, foi possível perceber o cuidado que se teve com a construção daquela linda carta. Uma bela dobradura, folhas bonitas e com escritos apenas de um lado e uma letra impecável, sem rasuras e nem ao menos erros de pontuação ou acentuação. Até os espaços entre as palavras pareciam milimetricamente calculados, dando a certeza de que não houve deslize de atenção em nenhum detalhe.

Como um bom virginiano que sou, todo esse cuidado com os detalhes é extremamente bem vindo e bem valorizado! Porém, mais que um aspecto agradável, esse cuidado apenas refletiu o cuidado que essa pessoa sempre teve comigo durante todo o tempo que nos conhecemos. De sempre perguntar se eu estava confortável, de sempre ser agradável, de sempre tentar ser útil... Enfim, tentando proteger e cuidar bem de alguém que era aparentemente importante para ela: eu!

Isso já seria mais que suficiente, mas lá estavam elas: as palavras! Já nas primeiras linhas elas demonstraram que haviam vindo realmente da pessoa que as escrevera, e, enquanto eu lia, ouvia a sua voz dizendo aquilo tudo, como acontece naquelas cenas de filme!

Nada formal, nada de protocolos a se seguir! Simplesmente a transparência que almejo encontrar em todos os amigos. Isso já me fez abrir um sorriso!

Diferente de mim, que gosto de guardar as partes mais fortes para o final, essa pessoa me surpreendeu logo no início! 

"Considere-se meu melhor amigo!". Cinco palavras foram capazes de trazê-la: a lágrima solitária! Várias outras quiseram vir depois, mas não saíram! Aquela lágrima tinha um papel muito importante pra cumprir!

A carta continuou, e muito bem! Ora remetendo a acontecimentos passados, ora com tons de gratidão, ora com tons de apoio, mas sempre demonstrando todo carinho e cumplicidade tão importantes em uma amizade!

Ao longo da leitura, aquela lágrima solitária ia percorrendo meu rosto. A sensação dela caminhando lentamente parecia cravar de vez todos aqueles belos sentimentos que exalavam das palavras contidas naqueles papéis!

Poderia sim estar em prantos, tamanha a carga emocional daquela carta! Mas a lágrima foi única, tão única como essa pessoa é em minha vida e sempre será!

E por fim a lágrima caiu e foi morrer na última página da carta, bem perto da assinatura, encontrando seu destino e selando de vez algo que nasceu para ser eterno! 


domingo, 9 de setembro de 2012

Escrevendo

E cá estou eu andando em uma das locações mais movimentadas da cidade. Sei que ninguém escreve a respeito disso, e sei também que ninguém escreve nessas ocasiões, mas aqui estou eu, andando e escrevendo sem nenhum propósito aparente.

Talvez essa seja uma das minhas maiores esquisitices, uma vontade sobrepujante de escrever em lugares atípicos. É quase um vício, um impulso mais forte que qualquer iniciativa própria de controlar.

Foi assim quando pulei de paraquedas na juventude, quando esperava minha mulher no altar, quando fui trocar meu filho pela primeira vez e no meio de uma apresentação em um congresso internacional.

Não, não sou um escritor profissional, e nem sequer cheguei a publicar nenhum dos meus rabiscos, mesmo porque a maioria deles não tem nenhum sentido, a não ser para mim. Sou apenas um professor universitário de arqueologia perto da aposentadoria.

Os inúmeros psicólogos que já consultei deram diversas explicações para essa minha "compulsão": vazio interno, insegurança, ansiedade, fuga da realidade, entre tantos outros. Porém, nada que eles sugerissem diminuiu essa vontade extramundana de escrever, a que eu prefiro atribuir ao prazer!

De fato nunca tive vontade de entender as razões desse meu comportamento. Só procurei auxílio devido a insistência da minha mãe, minha mulher e meus amigos, que diriam que qualquer hora dessas eu poderia morrer atropelado num impulso descritivo (o que também não faz sentido, já que um dos meus instintos é olhar para os dois lados da rua antes de atravessar, mesmo quando a mesma é de mão única).

Acho que nunca descrevi as sensações que tenho com essa prática... Mas nesses momentos o coração bate mais forte, consigo sentir o sangue correr em várias partes do corpo, reacendo partes apagadas da mente, me transporto a vários mundos diferentes e consigo achar todo o discernimento que preciso para as horas difíceis. Quase um orgasmo intelectual!

Se isso não incomoda a mim, porque haveria de incomodar tantas pessoas? Não sei explicar, mas creio que são essas coisas complicadas de seres humanos não se adaptarem com coisas diferentes e incomuns...

Bem, mais uma vez matei minha sede literal, agora preciso me apressar para a próxima aula daqui a 10 minutos!


quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Lenda Rural

21 de julho, 23:51, Araçagi, Paraíba. 

Vanioswalda atravessa rapidamente o pequeno córrego sobre a estreita e velha ponte sem parecer se importar com a falta de segurança. Valdinha, como era popularmente conhecida, fora valente desde nova, fato que seu tio atribuía a herança dos nomes dos avós paternos: Oswaldoyl e Vanicléia. Mas se tinha uma coisa que ela sempre temia era a madrugada do dia 22 de julho, que estava prestes a chegar... 

Já era sabido por todos que nesse dia o fantasma de Chiquinha, mulher de um dos fundadores da cidade, aparecia para assombrar todos aqueles que estivessem fora de suas casas e secar as plantações de fava dos indignos. Para esse último fato, agrônomos da região já tinham dado uma explicação que envolvia clima, solo e época de plantio, mas a teoria da Chiquinha continuava sendo a mais aceita.

"Não há 'mulestia' pior que topar com a finada Chiquinha no 22 de julho. Se o sopro que ela usa pra secar as favas passar por você, sua pele fica engilhada que nem um maracujá!".

Essa era a voz de sua avó fervilhando em sua mente enquanto ela tentava escapulir da plantação de fava que estava a sua esquerda.

"'Cumadi' Mariinha foi a derradeira a topar com a assombração. Tava voltando vexada de uma festa lá nas brenhas e não conseguiu chegar a tempo em casa. A pele dela era a mais lisa do vilarejo, e veja como está hoje!".

A velha Mariinha era a pessoa mas enrugada que Valdinha já havia conhecido, e só de imaginar que ela poderia ficar daquele jeito, apertou ainda mais o passo.

Barulhos... Vultos... Ventos gélidos... O coração de Valdinha ia entrando em disparada, e ela tentava se acalmar lembrando do conselho dos amigos de Sampa que conhecera pela internet: "Fantasmas não existem! Isso são histórias que contam pra assustar! Saia na madrugada desse dia e prove pra você mesma que é balela!".

Com certeza ela não teria se aventurado a sair tão tarde de casa não fossem as intermináveis conversas com seus amigos da cidade grande, mas agora, na hora do vamos ver, o medo acabava tomando conta...

Já passava da meia noite e, finalmente, ela havia chegado ao fim da enorme plantação de fava. Só pra garantir, deu uma olhada para trás e, ao ver que tudo estava calmo, se orgulhou de provar tudo não passava de uma lenda urbana! Porém, não imaginava que estava cantando vitória antes da hora...

Quando Valdinha se virou novamente, deu de cara com um vulto de uma mulher vestida de branco que logo soltou um grito aterrorizante! Não preciso dizer que nossa heroína saiu desembestada estrada a fora batendo todos os recordes mundias dos 100, 400 e 800 metros rasos. 

Ao ouvir o farfalhar das favas ao vento (bem sugestivo do sopro de Chiquinha), tirou energias sabe-se lá de onde pra evitar que a atingisse, mas ainda assim teve a impressão de ser tocada por uma leve brisa...

Chegando em casa, a primeira coisa que fez foi, com um certo receio, se olhar no espelho. Ao verificar que estava tudo normal, soltou um longo suspiro! 

Logo após isso, entrou numa dessas redes sociais e contou a recente história pra um dos seus amigos de São Paulo, que por sua vez riu e garantiu, embasado nos seus conhecimentos do quarto período de psicologia, que aquilo tudo tinha sido fruto da imaginação de Valdinha.

Mais calma, Valdinha foi pra cama, não sem antes dar mais uma conferida no espelho: Tudo estava bem!

No dia seguinte, após uma noite repleta de pesadelos, Chiquinha foi acordada aos barulhos do fuxico de sua mãe e a vizinha aos fundos. 

Com um cansaço fora do comum, ela se vestiu e partiu para cozinha a procura de um reforçado café da manhã!

Como de praxe, cumprimentou sua mãe e a vizinha a caminho da mesa já montada, porém, para sua surpresa, sua mãe desmaiou imediatamente e a vizinha ficou boquiaberta em estado de choque...

Valdinha ficou sem entender o que se passava até conseguir ver seu reflexo numa panela pendurada e não conseguir diferenciar de um maracujá murcho...

Sim, a maldição que outrora Valdinha debochara se tornou real, e agora ela estava fadada a viver daquele jeito pro resto de seus dias...


terça-feira, 14 de agosto de 2012

Pacato cidadão

De cima da sacada da casa da velha senhora Marple (que se autonomeou assim por gostar da personagem de mesmo nome de Agatha Christie) um pombo branco que não estava nem um pouco preocupado com a paz, mas sim com suas reviravoltas intestinais, alça um voo rasante e aproveita pra defecar, aliviando seu desconforto e quase acertando o nosso patético Haroldo, que andava distraidamente pela calçada.

Haroldo é um homem de trinta e poucos anos que gosta de tocar violão, apesar de só saber duas músicas, assiste aos programas dominicais com entusiasmo e é apaixonado pelo seu trabalho. Ele é repositor de estoque num hortifrutigranjeiro, e tem plena convicção que nasceu para isso!

Entre seus maiores prazeres estão observar os desenhos abstratos formados pelas fezes das galinhas nas cascas dos ovos, cortar as goiabas podres em quatro partes para observar os movimentos dos bichos e colecionar os moluscos encontrados em alfaces, que ele acredita piamente serem descendentes de extraterrestres.

Tirando isso e o fato dele dormir em uma cama feita exclusivamente de bambus amazônicos e só gostar de transar com mulheres com sutiã, podemos considerá-lo um indivíduo normal. Tão normal que poucos metros após quase ser atingido pelo míssil aviário, Haroldo pegou um panfleto eleitoral e o levou para casa sem jogá-lo no chão. Ok, não tão normal assim...

E eis que chega em sua casa, cuja porta de madeira tem gravados os dizeres "lar doce larica", traquinagens de uns garotos da vizinhança. Por vezes ele pensou em trocar a porta ou colocar uma guirlanda natalina permanente, mas acabou decidindo deixar daquela forma julgando ser um "humor moderno" e esperando ser mais bem aceito pelos garotos daquela faixa etária.

Sentado em sua cama, ele acaba de planejar os detalhes pra sua tão sonhada viagem para Inglaterra. Ele imagina que será um verdadeiro BBB: Beatles, Big Bang e Berlim, porém ninguém ainda teve a coragem de dar a ele a notícia de que algo nesse planejamento anda bem equivocado. Mesmo porque, ninguém sabe dos seus planos, afinal, para conseguir tal feito com o salário dele são condições sine quibus non ser sozinho e economizar o máximo possível!

A sua maior expectativa é que o confundam com o Mr. Bean, já que por aqui os seus colegas de trabalho e aqueles garotos da porta comumente o chamam por esse nome e, apesar de ninguém saber, ele adora!

Como ninguém é perfeito, Haroldo também tem seus medos, e os aviões habitam uma das partes mais pavorosas de sua mente. Tanto que naquela noite, véspera da viagem, de cada 10 sonhos, 11 eram acidentes com o avião: Avião explodindo, avião caindo em alto mar, avião sendo atacado por uma corja de caramujos gigantes e outras coisas do gênero.

Aqui, leitor, peço licença para dar-lhe umas explicações. Até o exato momento eu estava acompanhando tudo de perto e em tempo real, usando da onipresença que só nós narradores temos. Porém, como o salário está baixo (e olha que nem podemos fazer greve) e os profissionais estão escassos, resolvi fazer bico em outras histórias e acabei me esquecendo um pouco dessa. Garanto que vocês não vão ficar prejudicados, mas não reparem a mudança do tempo verbal.

Fato é que a viagem do nosso estimado Haroldo foi bem tranquila, não obstante, ele perdeu uns quatro litros de suor e quase se borrou nas calças durante as turbulências, mas chegou lá vivo apesar de uma leve desidratação.

Era difícil entender o que aquelas pessoas diziam e como elas insistiam em trocar as coisas. Ele ficou uns bons cinco minutos tentando abrir uma porta onde estava escrito "Push" mas que no fim das contas era para ser empurrada. Quanta ignorância! Mas o que mais o impressionava é que as pessoas o olhavam da mesma forma que olhavam para o Mr. Bean, e ele começou a se sentir realmente famoso e importante.

Após visitar a estátua de John Lennon no Cavern Club e ficar horas admirando a beleza e pontualidade do relógio mais famoso do mundo, Harold Bean (sim, ele estava se chamando assim) se tocou que faltavam apenas dois dias para seu retorno e ele ainda não havia conhecido Berlim. Foi então que, andando pelas ruas londrinas e perguntando pra todos que passavam como chegaria a seu destino, ocorreu o evento mais importante de sua vida.

Alguns matemáticos metafísicos acreditam que a vida é guiada por equações escalafobéticas regidas por fatores ainda desconhecidos, mas Mrs. Thatcher, uma senhora de 86 anos, não estava interessada na matéria que passava na televisão sobre aquele assunto e decidiu ir cuidar do seu jardim na sacada da janela. Após cortar algumas folhas velhas dos vasos e regar suas adoráveis plantas, a simpática senhora esbarrou naquele maldito tijolo que ela nunca soube o que fazia ali, e ficou até contente de vê-lo despencar do alto do décimo quarto andar.

Dizem as más línguas que aquela senhora já não batia bem das bolas, e aquele tijolo era um resquício do muro de Berlim que ela havia recebido de importantes autoridades. Se ela não batia bem, o tijolo fazia isso com propriedade, e foi logo na cabeça do nosso destemido herói (nessas horas, todos elogios são poucos) que ele bateu, realizando o sonho de Haroldo de conhecer Berlim, mesmo que indiretamente. 

Bem, não é um final feliz e talvez não seja o que vocês esperavam, mas só estou aqui pra narrar o que aconteceu. Só resta dizer que o atestado de óbito dele constatou "traumatismo craniano acidental segregatório".

sábado, 28 de julho de 2012

Ilusão do idiótico

21:22 de uma sexta feira de inverno. Chego cansada em casa e tenho 3 mensagens na secretária eletrônica: Minha mãe querendo saber sobre a minha alimentação, a Liz me chamando pra um barzinho com a Fê e a Luana e uma proposta de jantar com o Lúcio, um carinha que conheci há duas semanas. Prefiro não responder nenhuma. Amanhã invento uma cólica ou uma dor de cabeça pra justificar minha ausência.

Sim, sei que preciso descansar um pouco dessa vida corrida, mas prefiro optar pelo poder relaxante da minha cama.

Há dois anos eu era uma universitária louca pra conseguir emprego, dinheiro e independência. Imaginem a minha alegria ao ser contratada por uma das maiores multinacionais do ramo de metalurgia! Em pouco tempo comprei o Audi A7 que tanto cobicei e um apartamento em uma das zonas nobres da cidade. Perfeito!

Em menos de um mês, descobri que nem tudo eram flores: meu chefe era um homem de dificílima convivência e extremamente exigente; o trajeto até meu apartamento, um caos; as vagas remanescentes na garagem, impraticáveis e o síndico do prédio, um militar aposentado sem abertura para conversas. Além disso, estava com dificuldades de encontrar  uma boa empregada doméstica.

E nem gosto de tocar nesse assunto. Por uma discussão a respeito de empregadas domésticas acabei terminando com o namoro de três anos com o Marcos. Mas isso é página virada. Já superei (acho). E, além disso, os prós superam os contras!

Fato é que hoje não dá pra sair de casa! Vou tomar umas duas taças do vinho português que ganhei do meu pai e ouvir a reconfortante trilha sonora de Kill Bill!

Enquanto toca "Twisted Nerve", a quarta faixa do cd e uma das minhas favoritas, leio em um blog um texto sobre Reiki, uma prática oriental que mescla energia e espiritualidade. Sei da existência de uma pequena escola aqui perto. Acho que vou começar a fazer, já que o Tai Chi Chuan e o Yoga não surtiram nenhum efeito.

Sempre fui fã dos orientais. Tudo se iniciou com os mangás e animes na adolescência, hoje faço aulas de mandarim e japonês, minha casa tem vários cantinhos orientais e estou sempre buscando algo pra resgatar aquela bela cultura, apesar de ainda não ter achado nada que realmente combinasse comigo...

A fome bate. Vou no congelador e pego o pote de sorbet de manga. Nada melhor que uma espécie de sorvete sem gordura para matar minha fome e manter minha dieta. Que minha mãe não saiba que esse é o meu jantar! Confesso que minha alimentação não tem sido a mais balanceada possível, mas são tantas guloseimas e pratos novos que descobri de uns anos pra cá que ando me sentindo num paraíso gastronômico!

De repente minha irmã liga pra combinarmos de ir na joalheria comprar um brinco e um colar pra festa beneficente do próximo fim de semana. Depois da gafe da mulher do vice-prefeito aparecer com pérolas falsas na última festa, não podemos nem correr o risco de ir com jóias antigas! Pior que isso, só as roupas espalhafatosas da diretora de vendas da minha empresa. Como as pessoas conseguem ter tanto mal gosto?

A conversa com minha irmã rende, mas o sono acaba chegando avassalador. Despeço dela e desligo o iPhone. Antes de dormir ainda tenho forças de desligar o Mac que permaneceu aberto na página do Reiki. Finalmente posso ter meu sono dos deuses!

Uma festa num sítio, garoa fina, minha maquiagem toda borrada e o salto em uma das mãos. Na outra uma garrafa de vodka pela metade. Uma música dançante e as meninas felizes ao meu redor. Estou sorrindo! Estou me divertindo! Quanta felicidade!

Acordo.

Caio em prantos.

Ninguém entenderia se me visse assim, mas eu nunca, em toda minha vida, estive tão distante de mim mesma...



sexta-feira, 20 de julho de 2012

Passagem

Luzes se apagam na fria madrugada de Berlim. A maquiagem se borrou e a indumentária se encontra rasgada, mas nada disso a incomoda. O tempo parece ter estagnado e os últimos esforços para manter o corpo aquecido estão sendo feitos. Um cão lhe faz companhia, talvez esperando para se alimentar do que em instantes virá a ser uma carcaça. Nada. Nada. E de repente uma nota musical. Outra. E outra! Juntas elas formam uma melodia inspiradora! Hanna toma forças para segui-la. Inexplicavelmente a paisagem vai ficando disforme e ouve-se distantes latidos do enfadonho cão. É estranho. Seria medonho! Mas na melodia repousa toda a tranquilidade que ela necessita. Um reinício? O fim? Ela segue para descobrir com o sentimento de que isso não mais importa...



quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Bloco de notas



Se você olhar ali, bem no final da rua, com o pé esquerdo escorado na árvore e o fone nos ouvidos encontrará Henrique. 
Nesse momento, Henrique é um garoto de vinte e poucos anos como outro qualquer, exceto pelo fato de ser um pouco tímido e de sempre carregar consigo o que ele chama de bloco de notas, o que lhe rendeu o apelido de Doug. 
Não era raro ver Doug rabiscando alguma coisa no seu inseparável companheiro de viagem. Às vezes um desenho, às vezes um verso, às vezes uma simples frase, mas fato é que ninguém sabia ao certo o que realmente constava naquele tesouro pessoal. 
Certo dia, durante um acampamento que decidirá fazer com alguns amigos, Henrique levantou durante a noite para ver e registrar as maravilhas naturais noturnas. Seguiu uma trilha e logo à frente entrou em um trecho de mata não tão fechada. 
Para sua surpresa, deparou-se com um casal de desconhecidos transando à luz tênue da lua, sobre uma pedra lisa e rodeados de árvores frondosas. Por lembrar do consagrado "Sonho de uma noite de verão" ou pelo simples fato de achar a cena uma perfeita conexão entre o homem e a natureza, Henrique começou a registrar aquela imagem em seu bloco. 
Tudo estava indo bem, até que Henrique, ao tentar dar um passo pra conseguir um ângulo cuja iluminação estivesse mais apropriada, escorregou na serrapilheira chamando a atenção do casal. Eles pararam logo. O homem se vestiu às pressas, da melhor maneira possível, e foi tirar satisfações com o que ele imaginava ser um maníaco ou tarado. 
Vendo o bloco e o lápis nas mãos de Doug e evidenciando que sua massa muscular era bem maior que a do nosso herói, o homem nem deu tempo para que ele se explicasse, e foi logo aplicando-lhe uma bela surra. Entretanto, o que doeu mais para Doug foi quando o homem pegou seu bloco de notas no chão dilacerando-o em pequenos pedaços. 
Doug então chorou, e, indiferente aos sopapos que ainda estava recebendo e ao sangue que corria do seu lábio inferior e supercílio esquerdo, ele começou a recolher os pequenos pedaços de papel espalhados na folhagem e colocar nos bolsos, na esperança de recuperar seu tesouro. 
Irritado com o fato de Henrique não se importar com a surra que estava aplicando, o homem aumentou a força dos golpes. Henrique tentava concentrar sua atenção nos pequenos pontos brancos espalhados naquele mar de folhas secas. Porém, em um determinado momento, a paisagem começou a rodar. Tons de vermelho, azul escuro e negro apareceram em sua visão, ofuscando os pedacinhos de papel. Pouco depois ele caia desfalecido naquele cenário outrora perfeito... 
A próxima lembrança de Doug se remete a dois dias após esse incidente, quando ele acordou numa cama de hospital um tanto dolorido e com sua aflita mãe à cabeceira. Ele esperou que sua mãe terminasse as carícias e logo perguntou sobre seu bloco de notas, ao que ela respondeu que não fora encontrado e que as folhas de árvore e pedaços de papel encontrados no seu bolso haviam sido descartados. Após tal notícia uma expressão melancólica e desacreditada tomou conta de Henrique, e ele não mais pronunciou nenhuma palavra até o dia seguinte. 
Sabendo que ele havia acordado, os amigos que o acompanharam no acampamento e o levaram ao hospital foram visitá-lo. Eles tentaram conversar e interagir com Henrique, que parecia alheio a tudo e não esboçava nenhuma reação. Preocupados, os amigos acharam melhor se retirar para que ele descansasse e se recuperasse melhor, mas não sem antes deixar na mesinha ao lado uma folha que, segundo eles, estava na mão de Henrique quando foi encontrado inconsciente na mata. 
Quando sua mãe voltou, observou aquela folha na mesa sem entender muito bem o que significava e soltou um comentário meio pra si mesma: "parece uma folha do bloco do Rique". Aquilo pareceu despertar algo em Henrique que, ainda apático, esboçou a primeira reação desde então, estendendo o braço como num pedido para ver do que se tratava. 
Ao ver aquele pedaço de papel, um olhar de surpresa tomou conta do garoto, e em questão de instantes ele começou a chorar como uma criança que encontrara seu tesouro perdido. Ele não lembrava de ter feito aquilo, mas naquela folha, certamente pertencente ao seu bloco destroçado, repousara um resumo de tudo o que ele já havia feito. Desenhos em miniaturas, quadrinhos, frases de seus poemas e muitas de suas ideias se espremiam para caber na frente e no verso daquele pequeno papel. 
Ninguém poderia ter feito aquilo além dele... O que será que teria acontecido naquele meio tempo? Teria acordado e feito tal miscelânea? Ou seria fruto de alguma força sobrenatural inexplicável? Para Henrique não importava, bastava a sensação de retorno a vida que havia sido traga. Embriagado num choro de alegria, ele se atentou para a única parte que nunca havia desenhado: um rosto sorridente bem no estilo de seus traços com um balão de quadrinhos escrito: agora viva! 
Henrique se recuperou rapidamente após esse acontecimento, e em pouco tempo estava de volta a sua vida normal, apenas com uma discreta cicatriz no supercílio esquerdo. Disse a todos que havia sido atacado por um homem drogado e encapuzado naquele dia e que a folha pertencia ao seu desaparecido bloco de notas. Desde tal acontecimento, Henrique parou de usar o bloco de notas, se tornando uma pessoa mais sociável e mais segura de si, entretanto, ele guardou em uma de suas gavetas aquela relíquia e constantemente a admirava. 
Cerca de um ano se passou. 
Um dia, logo após admirar aquela folha misteriosa, Henrique caiu no sono, sonhando com o dia em que fora atacado. Ele estava na mata, observando a mesma cena com o bloco nas mãos. O bloco estava vazio, mas a perfeição daquele retrato o obrigava a desenhar. Era só ele não se mover! O desenho ia ficando pronto enquanto o casal continuava seu prazeroso ato. No último traço a felicidade de Henrique fora ameaçada, pois o casal olhou diretamente em sua direção. Henrique pensou em correr, mas suas pernas não o obedeciam. O medo tomava conta de si enquanto o casal se vestia calmamente o observando. Eles se aproximaram juntos, e o homem estendeu a mão como que pedindo o bloco. Henrique não queria, mas entregou. O casal observou o desenho por um tempo, até que uma lágrima escorreu dos olhos da mulher e um sorriso tomou conta do rosto do homem, que devolveu o bloco para Henrique com os seguintes dizeres: "Agora te entendo. Você me perdoa?". Atônito, Henrique disse que perdoava, e o homem lhe deu um abraço. Logo depois iniciou-se uma chuva de dinheiro e um disparo se ouviu. Instantes depois o homem caia numa serrapilheira de cédulas com uma marca de tiro no meio da testa... 
Henrique acordou suado e assustado. Que pesadelo horrível fora aquele! O garoto se levantou para lavar o rosto e beber água, e logo voltou a dormir. No outro dia, quando acordou e foi arrumar sua cama, observou que havia algo embaixo do travesseiro, como uma folha de papel. Impossível descrever a reação de Henrique quando viu que aquele papel era de seu bloco de notas e continha o desenho perfeito, como ele fizera em sonho algumas horas antes... E como se não bastasse, no verso havia um rosto desenhado juntamente com os seguintes dizeres "Obrigado, nos veremos em breve!". O rosto parecia familiar, e bastou Henrique pegar o papel da outra ocasião para perceber que era o mesmo rosto, aquele que ele jamais houvera desenhado. 
Não fazia o mínimo sentido! Absolutamente nada que ele pensava fazia sentido! Alguma coisa muito estranha estava acontecendo e ele, definitivamente, não estava muito curioso para saber o que era, só esperava que parasse por ali, pois já estava começando a assustar-se. 
Era melhor esquecer aquilo tudo e continuar vivendo normalmente. Henrique guardou agora as duas folhas em sua gaveta e foi tomar o café da manhã. Lendo o jornal que acabara de ser entregado, uma matéria o chamou bastante atenção: "Assalto a banco acaba em morte". Mais impressionante que o título, foi a foto 3x4 do homem que havia sido morto com um tiro na cabeça. Sim, o mesmo que o agredira e que ele havia acabado de sonhar. Henrique engasgou e quase sufocou-se quando deparou com a notícia. Não fosse sua mãe, talvez essa história terminaria aqui. 
Confuso e desorientado, Henrique decidiu espairecer um pouco. E porque não no mesmo local onde tudo ocorrera? Lá era tão bonito! Andou um pouco e decidiu visitar o local exato dos acontecimentos. Um local belo, mas não tão charmoso quanto era durante a noite. Revirou a serrapilheira e achou um ou dois pedaços de papel borrados, sem muita importância. Optou subir na pedra lisa e relaxar. Concentrou todas suas energias em um único pensamento: "Não quero mais me envolver!". Aos poucos relaxou e adormeceu na pedra. Algumas horas depois acordou bem mais disposto e menos assustado e voltou a sua vida. 
O tempo passou. Henrique acabou se tornando um arquiteto bem sucedido, se casou com Karine, sua bela ruiva, e teve um casal de filhos. Tranquilidade, garra e determinação eram algumas de suas características marcantes e todos o viam como um verdadeiro homem de fibra! 
Certo dia sua filha, já no auge de sua juventude e um tanto independente, anunciou que estava namorando um garoto chamado Yan, e convidou os pais para um almoço na casa de seu amado. 
Quando chegaram na casa, Henrique e Karine ficaram esperando na sala de estar até a mesa ser posta e os pombinhos, que estavam presos no trânsito, chegarem. Sem um anfitrião, Karine começou a observar as fotos espalhadas pela casa. Henrique fez o mesmo. Primeiramente viu a foto de uma mulher e uma criança, provavelmente a mãe o atual namorado de sua filha. Mais algumas fotos da mulher e algumas fotos do menino um pouco maior. Algo parecia familiar... Então, Henrique ficou estupefato quando viu uma foto antiga do casal e reconheceu o homem que havia o agredido. E claro, aquela mulher era a mesma que estava com ele aquele dia, como poderia esquecer? 
Ainda atônito com o que acabara de ver, um barulho na porta anunciou que o casal chegara. Henrique ficou boquiaberto. Aquele rosto que ele nunca desenhara estava ali na sua frente, do lado de sua filha. Vivo, humano! Seria possível? 
Durante o jantar, onde também estava presente a mãe de Yan, Henrique foi levantando evidências de que aquele garoto era realmente filho de seu agressor do passado e, pela idade do menino, era bem capaz que a gravidez tivesse acontecido naquela época. E era tão similar àquele desenho misterioso... Difícil de acreditar! 
Talvez a reação natural de Henrique seria odiar aquele garoto, ser contra o relacionamento ou qualquer coisa o tipo, mas não era isso que ele sentia. Ele tinha um apreço e um carinho grande por aquele ser que só conhecera por desenhos, como se fizesse parte de sua história. 
O jantar foi super agradável, e todos aqueles receios que os pais costumam ter a respeito dos relacionamentos dos filhos se dissiparam instantaneamente. Henrique nada comentou sobre suas impressões. Ninguém jamais saberia o que se passara com ele, era uma estória estritamente pessoal e fantástica demais para que qualquer um acreditasse. Mas para a sua surpresa (talvez a terceira grande surpresa que tivera na vida), durante as despedidas, Yan levou Henrique para um canto e disse as seguintes palavras: 
- Demorou, mas finalmente nos encontramos. Obrigado por ter me dado a vida, garanto que não irei decepcioná-lo! 
Henrique nada respondeu. Apenas deu um sorriso esperando a hora que abriria os olhos, acordando do que agora tinha certeza ser um sonho fantástico. Piscou vagarosamente para facilitar seu despertar. Porém, ao abrir os olhos novamente, estava ali, naquela mesma cena.
Henrique então, ainda calado, abraçou seu futuro genro com bastante afeto. Ao final das despedidas, ele a mulher e a filha partiram. 
Enquanto sua mulher dirigia, Henrique olhava para a Lua e sorria como um menino. Um daqueles sorrisos que parecem vir da alma, como dizem os menos céticos.
Naquele dia, Henrique (sim, nosso Doug) deitou em sua cama não em busca de explicações para tudo aquilo, mas com uma incrível sensação de desejo realizado. 
Até hoje, alguns podem perguntar porque Henrique carregara por tanto tempo aquele bloco de notas. E a verdade, é que ali ele realizava um sonho, temperando a monótona e lógica realidade com intensas pitadas de fantasia esperado o momento que ambas pudessem entrar juntas no palco para encenar a peça da vida, e, definitivamente, aquele momento havia chegado!