quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Lenda Rural

21 de julho, 23:51, Araçagi, Paraíba. 

Vanioswalda atravessa rapidamente o pequeno córrego sobre a estreita e velha ponte sem parecer se importar com a falta de segurança. Valdinha, como era popularmente conhecida, fora valente desde nova, fato que seu tio atribuía a herança dos nomes dos avós paternos: Oswaldoyl e Vanicléia. Mas se tinha uma coisa que ela sempre temia era a madrugada do dia 22 de julho, que estava prestes a chegar... 

Já era sabido por todos que nesse dia o fantasma de Chiquinha, mulher de um dos fundadores da cidade, aparecia para assombrar todos aqueles que estivessem fora de suas casas e secar as plantações de fava dos indignos. Para esse último fato, agrônomos da região já tinham dado uma explicação que envolvia clima, solo e época de plantio, mas a teoria da Chiquinha continuava sendo a mais aceita.

"Não há 'mulestia' pior que topar com a finada Chiquinha no 22 de julho. Se o sopro que ela usa pra secar as favas passar por você, sua pele fica engilhada que nem um maracujá!".

Essa era a voz de sua avó fervilhando em sua mente enquanto ela tentava escapulir da plantação de fava que estava a sua esquerda.

"'Cumadi' Mariinha foi a derradeira a topar com a assombração. Tava voltando vexada de uma festa lá nas brenhas e não conseguiu chegar a tempo em casa. A pele dela era a mais lisa do vilarejo, e veja como está hoje!".

A velha Mariinha era a pessoa mas enrugada que Valdinha já havia conhecido, e só de imaginar que ela poderia ficar daquele jeito, apertou ainda mais o passo.

Barulhos... Vultos... Ventos gélidos... O coração de Valdinha ia entrando em disparada, e ela tentava se acalmar lembrando do conselho dos amigos de Sampa que conhecera pela internet: "Fantasmas não existem! Isso são histórias que contam pra assustar! Saia na madrugada desse dia e prove pra você mesma que é balela!".

Com certeza ela não teria se aventurado a sair tão tarde de casa não fossem as intermináveis conversas com seus amigos da cidade grande, mas agora, na hora do vamos ver, o medo acabava tomando conta...

Já passava da meia noite e, finalmente, ela havia chegado ao fim da enorme plantação de fava. Só pra garantir, deu uma olhada para trás e, ao ver que tudo estava calmo, se orgulhou de provar tudo não passava de uma lenda urbana! Porém, não imaginava que estava cantando vitória antes da hora...

Quando Valdinha se virou novamente, deu de cara com um vulto de uma mulher vestida de branco que logo soltou um grito aterrorizante! Não preciso dizer que nossa heroína saiu desembestada estrada a fora batendo todos os recordes mundias dos 100, 400 e 800 metros rasos. 

Ao ouvir o farfalhar das favas ao vento (bem sugestivo do sopro de Chiquinha), tirou energias sabe-se lá de onde pra evitar que a atingisse, mas ainda assim teve a impressão de ser tocada por uma leve brisa...

Chegando em casa, a primeira coisa que fez foi, com um certo receio, se olhar no espelho. Ao verificar que estava tudo normal, soltou um longo suspiro! 

Logo após isso, entrou numa dessas redes sociais e contou a recente história pra um dos seus amigos de São Paulo, que por sua vez riu e garantiu, embasado nos seus conhecimentos do quarto período de psicologia, que aquilo tudo tinha sido fruto da imaginação de Valdinha.

Mais calma, Valdinha foi pra cama, não sem antes dar mais uma conferida no espelho: Tudo estava bem!

No dia seguinte, após uma noite repleta de pesadelos, Chiquinha foi acordada aos barulhos do fuxico de sua mãe e a vizinha aos fundos. 

Com um cansaço fora do comum, ela se vestiu e partiu para cozinha a procura de um reforçado café da manhã!

Como de praxe, cumprimentou sua mãe e a vizinha a caminho da mesa já montada, porém, para sua surpresa, sua mãe desmaiou imediatamente e a vizinha ficou boquiaberta em estado de choque...

Valdinha ficou sem entender o que se passava até conseguir ver seu reflexo numa panela pendurada e não conseguir diferenciar de um maracujá murcho...

Sim, a maldição que outrora Valdinha debochara se tornou real, e agora ela estava fadada a viver daquele jeito pro resto de seus dias...


terça-feira, 14 de agosto de 2012

Pacato cidadão

De cima da sacada da casa da velha senhora Marple (que se autonomeou assim por gostar da personagem de mesmo nome de Agatha Christie) um pombo branco que não estava nem um pouco preocupado com a paz, mas sim com suas reviravoltas intestinais, alça um voo rasante e aproveita pra defecar, aliviando seu desconforto e quase acertando o nosso patético Haroldo, que andava distraidamente pela calçada.

Haroldo é um homem de trinta e poucos anos que gosta de tocar violão, apesar de só saber duas músicas, assiste aos programas dominicais com entusiasmo e é apaixonado pelo seu trabalho. Ele é repositor de estoque num hortifrutigranjeiro, e tem plena convicção que nasceu para isso!

Entre seus maiores prazeres estão observar os desenhos abstratos formados pelas fezes das galinhas nas cascas dos ovos, cortar as goiabas podres em quatro partes para observar os movimentos dos bichos e colecionar os moluscos encontrados em alfaces, que ele acredita piamente serem descendentes de extraterrestres.

Tirando isso e o fato dele dormir em uma cama feita exclusivamente de bambus amazônicos e só gostar de transar com mulheres com sutiã, podemos considerá-lo um indivíduo normal. Tão normal que poucos metros após quase ser atingido pelo míssil aviário, Haroldo pegou um panfleto eleitoral e o levou para casa sem jogá-lo no chão. Ok, não tão normal assim...

E eis que chega em sua casa, cuja porta de madeira tem gravados os dizeres "lar doce larica", traquinagens de uns garotos da vizinhança. Por vezes ele pensou em trocar a porta ou colocar uma guirlanda natalina permanente, mas acabou decidindo deixar daquela forma julgando ser um "humor moderno" e esperando ser mais bem aceito pelos garotos daquela faixa etária.

Sentado em sua cama, ele acaba de planejar os detalhes pra sua tão sonhada viagem para Inglaterra. Ele imagina que será um verdadeiro BBB: Beatles, Big Bang e Berlim, porém ninguém ainda teve a coragem de dar a ele a notícia de que algo nesse planejamento anda bem equivocado. Mesmo porque, ninguém sabe dos seus planos, afinal, para conseguir tal feito com o salário dele são condições sine quibus non ser sozinho e economizar o máximo possível!

A sua maior expectativa é que o confundam com o Mr. Bean, já que por aqui os seus colegas de trabalho e aqueles garotos da porta comumente o chamam por esse nome e, apesar de ninguém saber, ele adora!

Como ninguém é perfeito, Haroldo também tem seus medos, e os aviões habitam uma das partes mais pavorosas de sua mente. Tanto que naquela noite, véspera da viagem, de cada 10 sonhos, 11 eram acidentes com o avião: Avião explodindo, avião caindo em alto mar, avião sendo atacado por uma corja de caramujos gigantes e outras coisas do gênero.

Aqui, leitor, peço licença para dar-lhe umas explicações. Até o exato momento eu estava acompanhando tudo de perto e em tempo real, usando da onipresença que só nós narradores temos. Porém, como o salário está baixo (e olha que nem podemos fazer greve) e os profissionais estão escassos, resolvi fazer bico em outras histórias e acabei me esquecendo um pouco dessa. Garanto que vocês não vão ficar prejudicados, mas não reparem a mudança do tempo verbal.

Fato é que a viagem do nosso estimado Haroldo foi bem tranquila, não obstante, ele perdeu uns quatro litros de suor e quase se borrou nas calças durante as turbulências, mas chegou lá vivo apesar de uma leve desidratação.

Era difícil entender o que aquelas pessoas diziam e como elas insistiam em trocar as coisas. Ele ficou uns bons cinco minutos tentando abrir uma porta onde estava escrito "Push" mas que no fim das contas era para ser empurrada. Quanta ignorância! Mas o que mais o impressionava é que as pessoas o olhavam da mesma forma que olhavam para o Mr. Bean, e ele começou a se sentir realmente famoso e importante.

Após visitar a estátua de John Lennon no Cavern Club e ficar horas admirando a beleza e pontualidade do relógio mais famoso do mundo, Harold Bean (sim, ele estava se chamando assim) se tocou que faltavam apenas dois dias para seu retorno e ele ainda não havia conhecido Berlim. Foi então que, andando pelas ruas londrinas e perguntando pra todos que passavam como chegaria a seu destino, ocorreu o evento mais importante de sua vida.

Alguns matemáticos metafísicos acreditam que a vida é guiada por equações escalafobéticas regidas por fatores ainda desconhecidos, mas Mrs. Thatcher, uma senhora de 86 anos, não estava interessada na matéria que passava na televisão sobre aquele assunto e decidiu ir cuidar do seu jardim na sacada da janela. Após cortar algumas folhas velhas dos vasos e regar suas adoráveis plantas, a simpática senhora esbarrou naquele maldito tijolo que ela nunca soube o que fazia ali, e ficou até contente de vê-lo despencar do alto do décimo quarto andar.

Dizem as más línguas que aquela senhora já não batia bem das bolas, e aquele tijolo era um resquício do muro de Berlim que ela havia recebido de importantes autoridades. Se ela não batia bem, o tijolo fazia isso com propriedade, e foi logo na cabeça do nosso destemido herói (nessas horas, todos elogios são poucos) que ele bateu, realizando o sonho de Haroldo de conhecer Berlim, mesmo que indiretamente. 

Bem, não é um final feliz e talvez não seja o que vocês esperavam, mas só estou aqui pra narrar o que aconteceu. Só resta dizer que o atestado de óbito dele constatou "traumatismo craniano acidental segregatório".