domingo, 11 de dezembro de 2011

Vida Breve

A presa se encontra encurralada. Os batimentos cardíacos estão acelerados. Ela ainda olha ao redor em busca de alguma possibilidade mínima de fuga, mas garras ferozes selam seu fim.

Choque hipovolêmico? Traumatismo craniano? Parada cardiorrespiratória? Arthur tentava desvendar a causa mortis do rato que acabara de vir a óbito pelas mãos do seu amado bichinho de estimação. Por mais que ele pensasse, e mesmo que descobrisse, ninguém além dele iria remover aquele cadáver antes que sua mãe chegasse. E ainda tinha o gato, que ficara todo ensanguentado depois de acabar com seu brinquedo vivo.

O rato num saco plástico e o gato numa gaiola que já estava ficando pequena. Enquanto Arthur levava o pequeno Kali ao pet shop para um banho caprichado, surgiram alguns pensamentos à respeito da brevidade da vida.

Gato entregue, Arthur decidiu passar no cemitério para visitar o túmulo do seu querido e honroso avô.


Adolfo Luís Pereira Filho

1922 - 2007


Toda uma história de vida se resumira ali. Nome, ano de nascimento e ano de falecimento.

Arthur ainda se lembrara do dia que seu avô engasgou enquanto se alimentava e foi ficando vermelho, roxo, até desfalecer em seus braços. Tão saudável! Tão disposto! Como pôde isso acontecer?

Algumas lágrimas não puderam ser contidas. Ele amava tanto o vô Dôfo, como carinhosamente chamava. Rodas de viola, dominó, as fantásticas histórias... Tudo aquilo de repente desaparecera num instante, para nunca mais voltar. Tão rápido, tão doloroso, tão breve...

Mesmo após quatro anos passados, Arthur não havia acostumado com ideia de seu avô morto. Ele ainda vivia! E a maior prova disso era o jardim de sua casa que vô Dôfo fizera questão de montar. A brisa leve, o sabor doce da pitanga e o perfume dos jasmins eram pra Arthur um presente constante daquele homem que outrora tanto admirava. Olhos fechados para lembrar daquele embrião de jardim, onde ele e vô Dôfo se divertiam plantando diversas mudinhas. Mudinhas que hoje cresceram e são uma eterna homenagem à memória daquele homem. Mais que um nome e duas datas cravadas numa placa!

Já? Ao olhar para o relógio Arthur se impressionou com o tempo que havia demorado. Estava tarde! Ele tinha que buscar Kali e depois passar na casa de sua noiva, uma típica virginiana que odiava atrasos. Nessas horas que se descobre o real significado da palavra pressa! Arthur pisou no acelerador com gosto, que foi um dos seus piores erros... De repente um sinal fechado, mas a velocidade está muito alta. Ouve-se ruídos de freadas de ambos lados do cruzamento. O tempo parece se desdobrar e poucos instantes viram uma eternidade. Arthur vê um filme de sua vida, relembra de vô Dôfo e só consegue pensar em uma palavra: BREVE! Um barulho se escuta...

O trânsito para. Ambulantes correm para o local atraídos pela curiosidade. Por um milagre não houve a batida que poderia ser fatal, mas Arthur estava desfalecido pelo susto e o impacto de seu sonoro airbag. Logo ele acorda e encosta o carro para um local seguro, após se desvenciliar do trambolho de ar que ajudou a salvar sua vida.

A polícia é chamada para fazer uma ocorrência e Arthur acaba ganhando uma multa e alguns pontos na carteira por conta de sua imprudência. Saldo bastante positivo pelo risco que havia corrido. Liberado, Arthur liga pra sua mãe, pedindo-a pra buscar Kali no pet shop e se dirige direto para a casa da noiva, já que precisa de um consolo.

Durante o caminho, ainda um pouco em choque e há uma velocidade bem moderada, Arthur fica imaginando como a morte está à espreita. Poderia ter acabado tudo ali! Será que valia a pena viver essa vida tão breve e sujeita ao inesperado?

Triste, Arthur estacionou na porta da casa de sua noiva e, ao tocar o interfone, foi atentido pela doce voz de sua amada pedindo que ele subisse. Ao chegar em seu quarto, ela estava em pé, com uma camisola rosa, olhos marejados, um sorriso amável e as mãos acariciando o ventre. Arthur logo entendeu o recado e, pela segunda vez no dia, não conseguiu conter as lágrimas. Partiu para um abraço efusivo com sua alma gêmea enquanto orgulhava-se e entendia de uma vez por todas aquela fatídica VIDA BREVE.


terça-feira, 4 de outubro de 2011

Esqueça


Esqueça as lacunas remotas do passado,
Esqueça o vento, a brisa, o relento.
Esqueça o mármore que refletia tua face
tingindo disforme teu pranto cruento.

Esqueça a miséria ardente do amor,
Esqueça a lamúria do canto arrependido.
Esqueça as garras cruéis e ardentes
que feriam a alma em eterno alarido.

Abandone as lembranças.

Guarde recordações em jazigos.
Monotonia em serenata
acordada a versos vazios.

Vociferar? Esbravejar? Colerizar?

Renunciar!
Destravar a velha caixa
que outrora Pandora tratou de abrir.

Libertar!
Liquidar!
Estancar!
Esquecer...

Esqueça a linguagem rebuscada dos poemas,

Esqueça a métrica inútil das palavras.
Esqueça o intenso esforço do poeta
de ocultar a ferida há muito escancarada.

Esqueça o passado sádico,
Esqueça o sofrimento dolorido.
Sopre as nuvens da intensa tempestade
que deixou em ruínas os campos floridos.

Esqueça

squeça
queça
ueça
eça
ça
a
.

E tudo acaba no ponto final.
E tudo acaba no ponto esperança.




sábado, 19 de março de 2011

segunda-feira, 14 de março de 2011

Como se fosse ontem


Era noite.

Uma noite fria, escura e vazia, onde nada parecia se mover. A sombra era a rainha daquele cenário, e o silêncio, o rei. Dominavam com maestria o reino das trevas.

Pode parecer muito clichê, leitor, dizer que nesse cenário havia alguém triste, solitário, achando que nada mais fazia sentido na vida. Também pode ser entediante ler sobre esse assunto mais uma vez, a ponto de você questionar a criatividade de quem vos fala. Porém, mesmo com tudo isso, tenho que assumir que sim, tinha alguém nessas condições nesse dia.

Não sei se é o dia, dito melancólico, que transforma as emoções dessas pessoas ou se são elas próprias que, uma vez se sentindo péssimas, veem o mundo com olhos depreciativos, mas o fato é que essa combinação é mais frequente do que se possa imaginar.

Independente de qualquer hipótese e alheio a todas elas, lá estava nosso personagem, que pediu pra não ser identificado por motivos pessoais, que também não vêm ao caso.

Estava deitado em sua fiel companheira, a cama, que já se encontrava, assim como a face do jovem, úmida com a quantidade de lágrimas derramadas. Ok, sei que não há originalidade nenhuma nessas duas últimas linhas escritas já que as últimas pesquisas mostraram que 452 pessoas ficam nesse estado lamurioso por noite e provavelmente, leitor, você já deve ter passado por isso uma vez na vida (ou mais). Sendo assim, você sabe que dois pensamentos são bem frequentes nessa ocasião. Um é a morte, o outro é a vontade de "jogar tudo pro ar".

Nosso pequeno herói considerou as duas possibilidades, mas optou pela segunda. Tomou uma espécie de banho, vestiu alguns trajes negros e decidiu sair de casa naquela noite. Sem rumo, sem objetivos e com um teor alcóolico considerável no sangue, justificado pela garrafa que carregava consigo.

Passou em frente a alguns lugares, se interessou pelas batidas fortes de uma casa de show, decidindo entrar. O álcool e a música pesada o fizeram descarregar parte daquela energia negativa, sob olhares no mínimo curiosos dos presentes. Aquilo era bom! Aquilo o fazia sentir melhor! Mas aquilo era passageiro...

No fim da noite ele saiu pior do que havia entrado. Andou um pouco, sentou num banco de praça e perdeu a noção do tempo...

Quando deu por si, já havia amanhecido e uma guria parecia chamá-lo insistentemente por algum tempo. Não era uma andarilha, não era uma vendedora, era só uma pessoa comum que se preocupou com seu estado deprimente.

Bem, leitor, vou te importunar mais uma vez interrompendo a história com um parêntese. Se você é um dos que já passou por situação similar, sabe que quando alguém demonstra se importar consigo você se sente, de algum forma, bem!

E nosso herói não foi exceção. Alguma coisa mexeu com seu estado de espírito, e ele viu uma luz naquela guria. Ficaram ali boas horas conversando. Até hoje ele não sabe precisar se foram quatro ou mais, mas só o fato da garota matar a aula de inglês pra ficar ali, fazendo companhia, já foi uma verdadeira pepita de ouro.

Ele ficaria ali boas horas, quando ela interrompeu dizendo que estava faminta. Só aí ele se tocou de quanto tempo não comia e de como estava precisando de uma bela refeição. Como gratidão, ele a convidou para um lanche, onde eles continuaram conversando por um bom tempo.

Quando eles se foram, não foram sozinhos. Um sentimento novo e bonito parecia estar nascendo no peito dos dois, e nosso herói apostou todas suas fichas nesse sentimento.

O tempo foi se passando e os dois foram se tornando cada vez mais próximos. Não consigo narrar metade dos sentimentos daquela garota quando, com um par de aliança de compromisso, ele a pediu em namoro. Uma cena linda! Uma felicidade compartilhada por duas pessoas que cada vez mais se tornavam uma.

Cartas, promessas, presentes, gestos, toques, beijos, amor! Amor! Era aquilo que sentiam um pelo outro. Era puro, era simples, era intenso, era mágico, era real! E real foi a sintonia dos dois na primeira noite. Era como se o paraíso tivesse descido à Terra! Seria tão bom se aquele momento fosse eterno...

Os meses se passavam e, cada vez mais, aquele sentimento ia tomando conta! Não conseguiam mais ficar longe um do outro por mais de dois dias. Quando não estavam frente a frente, o celular e o computador faziam a ponte necessária entre as duas almas! Era perfeito! Ou elhor, era quase perfeito...

Ela tinha um ciúme patológico, que o incomodava. Ele tinha uma carência enorme que ela, muitas vezes, não conseguia suprir. Por isso, algumas brigas e discussões vieram, como em qualquer relacionamento. Mas o amor era maior, e tudo aquilo era superado.

Com o tempo as discussões ficaram mais frequentes, o relacionamento foi ficando tenso e um tanto monótono... Ela parecia um pouco distante. Ele precisava fazer alguma coisa, e já tinha seu plano na manga.

Havia comprado as alianças de ouro e a pediria em noivado! Tudo ficaria bem de novo! Aquela prova de amor acabaria com qualquer remorso!

Um dia então ele marcou. Naquela mesma praça que haviam se conhecido, num fim de tarde, a sombra da majestosa palmeira imperial! Tudo estava perfeito, e ele tomou coragem para anunciar sua decisão (Os homens que já fizeram isso ou pensaram em fazer sabem perfeitamente o que significa tal momento)! Quando abriu a boca pra começar o discurso que havia preparado e ensaiado, ela o interrompeu com a justificativa de que tinha algo importante a dizer.

Ele estremeceu!

"Conheci outra pessoa, estou amando. Acho que não dá mais pra nós... Me desculpe..."

Dito isso, ela lhe deu um beijo no rosto, levantou-se, e o deixou atônito no banco da praça, com as alinças no bolso e o coração sabe-se lá onde...

Ele estava em choque. Não soube o que dizer. Não sabia como agir. Tudo havia acabado em frações de segundo.

O movimento na praça foi caindo, a noite foi chegando. Escura, fria e sombria. Sentimentos de outrora foram tomando conta do nosso herói. Era como se tivesse voltado ao passado. Era como se nada nunca tivesse acontecido.

O dia era igual, o lugar era o mesmo, os sentimentos eram tão ou mais pesados que os de antes, as opções não haviam mudado: morrer ou jogar tudo pro ar.

Ele, definitivamente, não queria cometer o mesmo erro de outros carnavais...


quarta-feira, 9 de março de 2011

Detalhe



E de repente fez-se o NADA.

Fez-se tão rapidamente que não gastou-se sete dias e sete noites, bastou uma noite para que o mundo se dissolvesse na mais pura essência do Nada.

Tudo estava ali, mas nehuma das coisas, seja viva ou morta, conseguia tocar na alma daquele ser desesperado cujos sentimentos haviam sido desprezados momentos antes.

A vida o havia deixado, escorrido por todos orifícios, mas esquecera de desligar o corpo que teimava em continuar funcionado, seja com batimentos cardíacos ritmicos ou com pensamentos que vez ou outra rondavam aquela cabeça.

Mas ele não estava ali. Talvez estivesse no passado, onde havia sabor em estar vivo ou talvez estivesse além. Além de onde possamos imaginar, num Universo que não pertencia a mais ninguém. Porque aqui, tudo pra ele era Nada!

Alguns diziam que ele havia se torndo um zumbi, mas zumbis só vivem pra se alimentar, e ele não comia há uma semana.

Alguns diziam que ele estava depressivo, mas depressivos choram, e ele não havia derramado ainda uma lágrima sequer.

Alguns diziam que ele estava morto, e desse argumento só a fisiologia duvidava, mas o tempo tratava de convencê-la que aquilo estava certo...

Quando a morte do corpo parecia certa, todos se surpreenderam. De repente, do Nada, veio uma ideia fixa àquele ser: escalar uma montanha!

Ele se levantou, resgatou suas economias, voltou a se alimentar, pesquisou e decidiu seu destino. Um dia, com um largo sorriso no rosto, saiu para sua escalada.

Todos ficaram contentes, acreditando que ele havia melhorado. Poucos foram os sábios que deduziram que ele só estava procurando um caminho pra se encontrar de vez com o Nada...

A escalada não fora difícil. Ele estava com um pensamento fixo e todas suas forças voltaram-se para a realização desse objetivo.

Ao chegar ao topo, ele se sentou e fez um mergulho no passado. Dessa vez algumas lágrimas caíram. Ao lembrar dos pais, falecidos recentemente num acidente aéreo, ao lembrar da infância pura e sem preocupações e ao lembrar do amor de sua vida, que o havia deixado covardemente sob xingamentos.

O filme passou por completo. Era a história da vida no palco da morte. Era tudo que ele havia passado até chegar naquele momento de Nada. Eram os paradoxos que se faziam presente na vida daquele ser. Vida? Bem, talvez essa fosse mais um paradoxo.

Decidido, ele se levantou para cumprir o que acreditava ser sua última missão na Terra. Direcionou-se para beira do precipício, fechou os olhos, respirou fundo e, quando abriu os olhos pra saltar, um movimento à sua esquerda lhe chamou atenção.

Uma borboleta tentava sair do casulo, mas por algum motivo não conseguia. Dos confins de sua mente veio a velha máxima de Lavoisier: "Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma". Aquela outrora lagarta estava se transformando em uma borboleta, mas precisava da energia vital que ainda pulsava nele pra se libertar. E com essa dedução e um sorriso no rosto ciente de que estava fazendo a coisa certa, ele pulou...

...

Ele pulou. Tinha certeza que havia pulado! Mas, estranhamente, ainda estava ali! Como era possível?

Olhou pro lado novamente e viu a borboleta, que, finalmente, conseguia se libertar. Como ela conseguira sem o seu sacrifício?

E no primeiro voo, a borboleta parece ter respondido aquelas perguntas. Foi um voo curto, em volta da cabeça do rapaz, com um suave pouso em seu ombro.

Até hoje não sei o que foi dito, mas, seja o que for, mudou a vida daquele garoto. Tudo parece ter ficado colorido novamente. Tudo parece ter voltado a ter sentido. Tudo parece ter ganhado novo fôlego.

A borboleta foi embora e o garoto voltou.

E do Nada fez-se o TUDO!

domingo, 6 de março de 2011

Pra que me conter?

Pra que me conter?
Pra engolir os espinhos de decepção e rasgar minha alma com lamentações e desespero?

Pra que me conter?
Pra manter as aparências enquanto me rói por dentro um ódio mortal?

Por que não dilacerar meus pulsos com uma lâmina de gilete se já dilaceraram meu coração com armas muito mais cruéis e dolorosas?

"Não, você tem que ser mais forte, não pode deixar que essas coisas te afetem!"

Como? Não posso deixar que minha dor transpareça? Tenho que parecer perfeito aos olhos da sociedade? Por quê? Me dê um único motivo!

Devo negar minha essência só porque ela aparenta ser ruim e me mostrar como um bonequinho perfeito? Mas ninguém é perfeito, por que eu devo querer que achem isso de mim?

Qual o problema de eu ter quebrado pratos e rasgado livros em um acesso de raiva? Deveria ir ao manicômio? Mas não seria o manicômio também o lugar de hipócritas que negam a si próprios só pra se adequar ao "certo" que lhes foi apresentado?

Me perguntaram o porque de tanta revolta. Será que não é claro? EU SIMPLESMENTE QUERO SER EU!

Por inteiro! Sem críticas, sem repreensões, sem poréns...

"Se contenha!" MAS POR QUE EU DEVO ME CONTER? Pra acumular raiva e sair matando dezenas de pessoas por aí num relapso impensado de justiça?

Se foi me dado o direito de vociferar, de sentir ímpetos de raiva, de me desesperar por uma perda, de chorar por uma decepção, por que devo abdicar disso tudo?

Não, não vou me conter! E também não queira que eu me contenha... Vou sentir tudo o que meu corpo permitir, vou aproveitar todas as sensações que a Vida tem a me oferecer, mesmo aquelas que lhes pareçam ruins, porque muito acima do seu julgamento ao meu respeito estou EU e, com certeza, não vou me abandonar por qualquer coisa...

Voejar


Vejo vales verdejantes
Ouço o assovio do vento
A Vida pulsa em cada instante
Um vulcão de lembranças e esquecimentos.

Viajo distraído na vastidão
Velozes vilões do pensamento
Vaza ternura e emoção
Cavo no vazio do momento.

Vou pra caverna invernal
Um cravo vela minh'alma
Cadáver que valsa lívido
No velho vagão das lágrimas.

Corpo vazio vaga voraz
No voo da ave vê esperança
Vítima cruel do seu vandalismo?
Ou vil refém de sua ignorância?

Movo em direção a um vilarejo
uma voz vocifera feroz
"Volte a viver dignamente
ou vá para o inferno atroz!"

Audaz e valente orador
Desafiando a visível covardia
Velejo feliz de volta
Revejo a velha alegria.

Vida passa veemente
Vendavais vem e vão
Sangue viaja nas veias
E desagua vibrátil no coração.

As vogais vazam pela mente
E avisam que é hora de partir
O poeta há agora de volver
Mas a Vida continua a florir!

sábado, 5 de fevereiro de 2011



O tic tac do relógio me hipnotiza e mergulho no mar de azulejos azuis daquela parede antiga. Um mundo novo surge diante dos meus olhos. Olhos? Não, as pessoas não os tem. São só duas aberturas brancas que assustam, mas nos convidam pra entrar. Não reprimo o meu desejo. Ultrapasso a brancura ocular de um ser e me vejo viajando no seu interior. Caio num grande salão de uma gruta, que dá passagem a uma sala luxuosa. Dentro dessa sala existem pessoas. Pessoas normais, com olhos. As pessoas não me veem, mas elas brigam entre si. Espere! Aquela pessoa não é a mesma cuja os olhos estavam brancos agora? Sim! Ela se vira e me olha com pânico. Nas suas costas é apontada uma arma de fogo que dispara. Aos poucos a vida contida naquele corpo se esvai enquanto o olhar daquela criatura agonizante permanece em mim. Morte. Me viro e vejo uma luz branca convidando pra sair. Dou um passo e sinto algo segurando minha mão. É a criatura, mas já sem olhos. E eu já estou onde estava antes. Antes de aceitar mais um convite ocular decido a observar o lugar. As pessoas permanecem paradas em seus lugares. Quando se movimentam, isso se dá muito rapidamente, e elas parecem flutuar. Me assusto, mas antes que o medo me paralise, me pego mergulhando em outro olhar sem olhos. Novamente uma gruta, mas dessa vez ela dá para um campo de pampas com um imponente jacarandá. A paisagem é bela, mas a cena que está prestes a acontecer não. No alto do jacarandá, o dono dos olhos perdidos (agora com eles) tem uma corda ao redor do pescoço e acaba de dar o último nó no tronco da árvore. Tento impedir o enforcamento iminente, mas minha voz não sai, minhas pernas não se mexem... É nesse momento que aquele ser me mira, e assim o faz desde seu salto até a hora que que o ar se vê impedido de entrar naqueles pulmões. Pulmões mortos. Seus olhos desaparecem e ao mirá-los me vejo novamente no salão dos "desolhados". Começo a correr procurando uma fuga, mas os convites são constantes. Uma mulher atropelada. Um homem decapitado. Uma senhora envenenada. Uma criança abortada. NÃO! Fecho meus olhos e tudo vira escuridão. Quando os abro novamente só há uma pessoa com o globo ocular alvo, e essa pessoa sou eu! Atordoado aceito aquele último convite. Da gruta passo a um familiar cômodo todo azulejado de azul. Lá estou eu (ou um clone de mim) sentado a mesa, com os olhos ainda perfeitos. De repente, como num deja vú, o clone começa a olhar na direção dos azulejos, mas entre os azulejos e o olhar estou eu. É como se eu olhasse nos meus olhos mas não me visse. E como todos os outros olhares, esse também era penetrante, quase uma súplica. Um estrondo se ouve, levando o cômodo com seus belos azulejos azuis abaixo. Meu "clone", é atingido por um grande bloco de pedra que outrora compunha o teto, e ele mantém seu olhar fixo em mim até seu último suspiro. ÚLTIMO SUSPIRO? Novamente estou no salão, mas agora não há ninguém, só eu e um grande espelho. Por incrível que pareça, não tenho mais olhos... Entendo o que está acontecendo e tento chorar. Incrivelmente as lágrimas vem, mas elas são negras, e começam a manchar minha roupa e turvar minha visão. Tudo vira treva!



Escuto o tic tac do relógio, abro meus olhos e me deparo com os azulejos azuis. Primeiramente me assusto, mas depois percebo que dormi escorado na minha mão e tive um sonho esquisito. A rotina cansativa está me fazendo adormecer em qualquer lugar! Me levanto e decido tomar um banho para me manter acordado. Já no box me dispo, e é nesse momento que um vento gélido percorre minha espinha causando um arrepio na alma: Minha camisa está toda manchada de negro...


quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Farrapos!


Acabei de receber uma ligação. A notícia não é boa, mais uma briga se aproxima. E é daquelas típicas, tipo chuva de verão, que forma rápido e despenca de uma vez e com toda a força. A única diferença é que a chuva passa rápido, a briga deve render por um bom tempo. Sem vontade de ir pra casa, saio do trabalho e rumo em direção a uma praça com o objetivo de me preparar para o que está por vir. Sento num banco e, não muito tempo depois, senta-se uma senhora ao meu lado. Ela começa a falar, falar, falar... Pelo pouco que escutei ela contava histórias da sua vida. Não tava com paciência pra esse tipo de coisa e fui respondendo monossilabicamente até ela se despedir uns 20 minutos mais tarde. Observo o montante de carros, motos e ônibus ao redor da praça e já me estresso com o trânsito antes mesmo de entrar no carro. Não bastasse isso, o flanelinha ainda me arranca 5 reais por ter "olhado" o carro (na verdade só dei porque o arame na mão dele anunciava o prejuízo que eu teria se não pagasse pelo "serviço"). Tento uma rota alternativa e acabo me perdendo na cidade. Na falta de um ambulante na rua, estaciono meu carro próximo a uma padaria. Bom que já compro pão para o dia seguinte. Quando entro na padaria percebo o assalto, e quando tento sair de fininho sinto o cano de uma arma nas costas mandando eu ficar quieto e passar tudo. Ótimo, lá se foram o dinehiro, o celular, os cartões.... Mas ficou pior quando, acabada a limpa na padaria, eles decidiram roubar o carro de um dos clientes pra fugir. Qual? Bingo! Perdido, sem dinheiro e sem carro. Ótima hora para o seguro estar atrasado... Imploro dinheiro para passagem de ônibus aos poucos clientes que se safaram do assalto e consigo alguns trocados acompanhados de informações de como voltar pra casa. Atrasado e faminto, escuto os trovões ribombarem em casa antes mesmo de girar o trinco da fechadura. A mulher já está uma fera e nem espera justificativa. Depois de 40 minutos escutando seus gritos eu enfim posso dizer o que e passou. Após ser ouvido um sopro de piedade toca nela e eu ganho autorização pra jantar. Me sirvo e logo na primeira garfada, mais gritos, dessa vez desesperados. Minha mulher diz aos prantos que o Júnior está tendo uma convulsão. Às pressas pego o fusca dela e temos que correr com o menino para um pronto socorro. Já é meia noite quando chegamos e somos atendidos. O médico diz que pode ser grave e as horas vão se passando enquanto a tensão do momento não me deixa pregar os olhos. Quando o médico vem com o diagnóstico, as recomendações e decidi dar alta pro meu filhão já são 5 horas da manhã e, por fim, decidimos ir para a casa. Volto sonolento, e, como se a situação já não tivesse ruim, consigo bater na traseira de uma BMW nova. Mais um bom tempo até a polícia e o reboque chegarem e resolverem tudo (ainda não faço ideia de como eu vou pagar, mas...). Pelo menos os policias, condolentes com a situação, levaram minha mulher e filho para casa. Eu tive que pegar ônibus novamente. 8 horas da manhã, na hora de sair pro trabalho, chego em casa. Tomo banho, me arrumo e decido deitar por 5 minutinhos, mas o sono me pega de jeito, e quando acordo ainda são 8 horas, porém da noite...

Então foi por isso que não vim ontem, chefe, e se você puder pensar na possibilidade de um aumento eu não acharia ruim...
.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Melancolia


E hoje choro! Choro porque transborda de dentro de mim, por uma rachadura que outrora não passava de um pequeno trinco, o sentimento que sempre esteve ao meu lado, até nos melhores momentos: a malfadada melancolia.

Por causa dela já me puni, já fui julgado, já fui condenado e já cumpri penas que nem a prisão mais asquerosa deste mundo é capaz de oferecer.
Mais uma vez estava preparando um punição, quando de repente, num impulso desses que não se sabe explicar de onde surge, recordei toda a nossa história. Acho que meu primeiro encontro com ela foi no ventre de minha mãe. Poderia poeticamente descrever esse encontro sendo eu um bebê nadando num mar de emoções maternas e naufragando numa pequena ilha de melancolia que se tornara meu reduto preferido! Mas hipócrita eu seria, e estaria faltando com a verdade, já que, como todas as outras pessoas em sã consciência, de nada me lembro da minha vida fetal (poderia também questionar minha sanidade, mas não quero ludibriar, me conterei apenas a narrar os fatos com a lógica de que fui agraciado).

Se não tenho provas de que a melancolia se fez presente na minha vida antes do mundo me receber, porque fiz tal suposição? Bem, nunca disse que não tinha provas, só disse que não tinha lembranças!

Se a poesia não convence, a ciência, mesmo quando não muito apurada, transforma qualquer besteira em fato verídico, pois vou me apoiar nela. Não que eu esteja prestes a contar uma inverdade, mas quero ter certeza que o leitor não tenha dúvidas ao deparar com tal fato. É de conhecimento geral que o consumo de certas substâncias, comumente chamadas de drogas (medicamentos, álcool, tabaco, entre tantas outras) podem afetar o desenvolvimento fetal levando ao aparecimento de lesões de diversas ordens. Da mesma forma, desequilíbrios emocionais também são capazes de causar sequelas nos bebês, mesmo que essas sejam apenas psicológicas. Aos mais céticos que veem isso apenas como uma metáfora posso indicar-lhes pelo menos meia dúzia de artigos científicos e teorias bem embasadas a esse respeito. Àqueles que já se convenceram, peço um pingo de confiança para acreditarem quando digo que durante a minha gestação minha mãe teve um dos momentos mais instáveis de sua vida, questionando inclusive se aquela gravidez deveria ser levada adiante.

Não quero que sintam pena ao lerem isso, não é minha intenção. Quero apenas que considerem a possibilidade de que meu encontro com a melancolia tenha sido tão precoce. E se os fatos narrados aqui apontam apenas para um possibilidade, ela se torna concreta, ao menos para mim, quando o adjetivo MELANCÓLICO é usado por um médico para caracterizar o primeiro choro de um bebê ao avistar o mundo (ou pelo menos as paredes brancas de um quarto de hospital). Sim, esse bebê é o mesmo que vos fala agora: eu!

Daqui poderia pular para minha primeira infância. Aquela em que a criança tem suas primeiras lembranças. Porém, o relato de terceiros ainda me é de grande interesse nessa narrativa. Tudo bem que eu vou contar com as minhas palavras as impressões que várias pessoas tiveram sobre mim que, por sua vez, chegaram aos meu ouvidos pela ótica dos meus pais. Dizem que quem conta um conto aumenta um ponto, e concordo que isso seja verdade e talvez se aplique aqui. Mas na impossibilidade de usar uma máquina do tempo que me daria a visão real dos fatos (e só não a uso pois ela ainda não foi inventada) e considerando que essa época é importante para o caminhar da narrativa, creio que essa seja a melhor ferramenta a ser utilizada!

O médico não foi o único a reparar um tom diferente no meu choro. Parentes e vizinhos diziam o mesmo: "O choro dele é diferente. Meio triste...". Preocupados meus pais me levaram a vários pediatras, mas todos descartaram a possibilidade de problemas respiratórios ou nas cordas vocais. Foi de minha avó, uma das pessoas mais sensíveis que conheço, que minha mãe escutou algo que, quando me foi contado, causou um grande impacto: "Esse menino não tem problema nenhum! Ele simplesmente sente as chagas do mundo como se fossem as suas...". Minha mãe conta que se arrepiou e xingou minha avó, mas depois de ter ciência disso, essa frase nunca saiu da minha cabeça. Claro que já perguntei pra minha avó a respeito disso. Ela me disse que não tinha como explicar, ela simplesmente compreendia o sentimento contido nos meus lamentos infantis. Ao fim ela me perguntou se havia errado no seu "diagnóstico" e eu tive que concordar que não havia erro, era exatamente aquilo.

Lá se foi um imenso parágrafo com impressões alheias, e ainda acho que muito ficou de fora, como o olhar distante e triste que algumas primas repararam, a "cara de ator de novela mexicana" que eu fazia depois de chorar, como bem viu minha madrinha ou o apelido "pequeno desiludido" dado pela babá que me olhava de vez em quando. Mas chega, passaremos às minhas lembranças, já que a essa altura do campeonato eu já estava mais crescidinho.

Uma das minhas maiores diversões na infância era desenhar! Nunca me considerei um bom desenhista (hoje em dia me considero péssimo ou um pouco pior) mas era apaixonado por aquilo. Dizem que arte e melancolia andam juntos, mas não é nisso que quero me apoiar agora. Gostava de desenhar. Mas o lápis e o papel, o giz e o quadro negro, o pedaço de tijolo e o chão acimentado não eram suficientes para satisfazer meu desejo. Só me sentia completamente realizado quando desenhava nas paredes! Arte! Era o que minha mãe dizia: "Para de fazer arte menino!", e logo me espantava com uma havaiana gasta na mão sem ter coragem de me dar uma palmada. Porque a parede? Bem, os papéis rasgavam e sumiam, o quadro negro era apagado, o chão era lavado pela chuva, mas o desenho na parede permanecia. Mesmo que minha mãe tentasse limpar, ele só ficava um pouco mais apagado, mas continuaria ali. E eu achava mais bonito ele meio apagado, borrado, escondido! Era como se uma parte dele tivesse ali e a outra parte tivesse dentro de mim!

De todos esses desenhos, um era especial. Ficava no meu quarto (sim, eu desenhava em todos os cômodos da casa) e representava a minha mãe. Talvez não passasse de rabiscos infantis, realmente não era mais que isso! Mas um belo dia (não tão belo assim, estava nublado e o dia estava escuro, o que para mim configurava um dia perfeito) meu pai decidiu reformar a casa e nos comunicou. Todos ficaram felizes, menos eu, pois sabia o que estava por vir. A reforma caminhou, até chegar ao meu quarto. O quarto fora esvaziado e o pedreiro já estava lá para lixar a parede. Eu não queria ver aquele momento, estava no quintal tentando me entreter com alguma brincadeira. Quando escutei o barulho da lixa trabalhando, algo queimou dentro de mim e eu subi correndo as escadas até o meu quarto e, ao chegar na porta, pedi licença ao pedreiro para que eu pudesse despedir do meu quarto: "Não fique triste garoto, ele ficará bem mais bonito!". Ele saiu, eu tranquei a porta e encarei aquele desenho. Não sei em quanto tempo as lágrimas verteram, talvez antes de eu chegar perto o suficiente. O olho embaçado pelas lágrimas fez com que aquela figura se movesse. Uma parte dela se movia do lado de fora, e outra do lado de dentro. Um misto de felicidade e tristeza. Um fogo queimava ela internamente, assim como a lixa a dilaceraria externamente. Um sentimento de perda incrível... Pode parecer pecado, mas era como se visse minha mãe pela última vez....

Em dois dias meu quarto estava pronto, e eu continuava melancólico. Meu pai me perguntava: "O que é filhão, não gostou da cor? A gente muda!". Eu fingia que estava tudo bem e eles acabaram fingindo que acreditavam e aos poucos fui convivendo com aquela situação até superá-la. Claro que não completamente, só de fazer esse relato uma ou duas lágrimas foram derramadas por conta desse evento.

Podia me extender contando sobre as músicas infantis que eu mais gostava: aquelas com melodia e/ou letra melancólica, sobre os meus heróis, já que todos tinham uma tristeza na vida, sobre a tragicidade colocada nas histórias que construia com os meus brinquedos e tantas outras peripécias infantis, mas não quero me alongar muito, creio que a história do desenho já resume bem minha infância deveras incomum.

Daí, parto para o que pode ser o verdadeiro terror pra qualquer criança que tenha tido, como eu, esse encontro precoce com a melancolia: a época escolar! Não que eu não tivesse aquela vivacidade infantil de todas as crianças, mas ela ficava coberta por brumas mais ou menos densas, dependendo da ocasião. As outras crianças viam só as brumas e me tratavam como o diferente, o que só fazia que a bruma se adensasse mais e me colocava mais perto do meu refúgio melancólico. Dizem que crianças são inocência, o que é uma verdadeira balela! Elas não são inocência, elas são essência, assim como eu era naquele momento, e pago o que quiserem se me provarem que a essência humana é inocente. Sempre há aquele espírito de porco, que logo se faz popular e começa a "espalhar o terror" escola afora e sempre há o esquisito, o diferente: esse papel caiu como uma luva para mim.

Quando se está na escola parece que o tempo é medido por ela. Não há quem não diga: Na quinta série aconteceu isso e isso, na sétima série eu fiz tal e tal coisa e por aí vai. Não vou fugir a regra agora, e caminharei pela minha infância e adolescência usando o tempo escolar como referência, já que é lá que temos as relações sociais mais determinantes nessa época da vida.

Como assumi logo o papel de estranho, na verdade, me deram esse título, me dediquei aos estudos, o que rendeu frutos. De estranho, virei CDF lá pra segunda série. Ainda não sei o que é pior, mas sempre sofri escondido por essas alcunhas que me eram colocados, já que eu só queria ser como a maioria. Eram nas redações de português que essa melancolia tomava forma. Na terceira série uma professora ficou encantada/preocupada com um poema meu. Perguntou se estava tudo bem, e eu respondi que sim (nunca quis dar mais justificativas pra me taxarem de estranho) e então ela me apresentou Cecília Meireles. Já na quarta série eu já estava apaixonado pela "escritora das almas" como eu a chamava. Era como se eu fosse descrito ali! Isso despertou ainda mais aquela melancolia que eu tentava ocultar. E pouco importa o que dissessem! Andava mesmo com as pessoas "esquisitas", vestia preto e ouvia rock'n roll, chorava em público se sentisse vontade, mas estava sendo eu mesmo!

A arte sempre guiou minha melancolia, ou foi guiada por ela, não tenho muita certeza... Clarice Lispector, Nirvana, Beethoven, Renato Russo, Van Gogh, pra citar alguns exemplos.

Com o tempo fui aprendendo a conviver com a tal melancolia (afinal, era quase minha irmã gêmea univitelina) e a partir da sexta série comecei ter relações sociais agradáveis sem que ela interferisse. Cheguei até a ser popular na oitava série, mas isso me incomodava, me deixava triste. Era como se não fosse eu, era como se não combinasse comigo. De fato, me incomodou porque toda aquela alegria toda que a popularidade me oferecia ao mesmo tempo me fazia abandonar a melancolia, minha companheira de sempre!

Mudanças! No ensino médio fui para outra escola, e só levei comigo a melancolia. Já sabia domá-la até certo ponto. Em momentos eu a dominava, e em momentos ela me dominava, mas nunca atrapalhou minhas amizades (algumas das quais mantenho até os dias atuais). Se eu fazia parte do grupo dos estranhos? Provavelmente! Mas não me sentia pior por isso! Eram essas pessoas que sabiam reconhecer e respeitar os dias em que eu queria ficar sozinho no meu silêncio. Eram elas que me resgatavam de certas crises e me davam forças para temperar meu estado de espírito e não me deixar ser dominado. Eram, de certa forma, meu porto seguro!

E foi no último ano escolar, certo que a melancolia estava me atrapalhando que começou as Cruzadas! A perseguição ferrenha para destruir esse sentimento destrutivo! Eu era o perseguidor e o perseguido. Me muni de armas, aprendi diversas táticas de guerra e comecei a caçá-la!

Não pense (como eu pensei no início) que essa caçada seria breve. Quando eu pensava ter matado-a, ela chegava pelas costas e com um punhal desferia violento golpe que me enfraquecia. Sim, ela não aceitou parada essa caça, também entrou na luta! À partir daí veio uma vida de extremos: momentos de inestimável alegria mesclados com momentos de inesquecível dor. No final de uma guerra, os dois lados saem perdendo! E como os dois lados estavam em mim, essa guerra me fez amargar o pior ano da minha vida em diversos aspectos.

Fim da guerra? Os tolos, ou talvez os sabios, porque o que estão a se deparar é com mais um momento insano de minha parte, podem pensar que sim. Mas era só o início do que pode se chamar de Guerra Fria. Talvez fosse mais interessante usar um termo original para descrevê-la, mas se posso me apoiar na história mundial para me ajudar a explicar o que se passara, pra que dispender tempo e raciocícnio pra criar um termo impactante? Bem, voltando a história, não a mundial, mas essa que vos conto, ainda considerava a melancolia minha inimiga, e fui tentando destruí-la indiretamente, como os Estados Unidos fizeram com a União Soviética outrora e, pasmem, ela foi enfraquecendo aos poucos, até se tornar uma moribunda sem força pra nada.

ESTABILIDADE! Não sabem como é bom viver o real significado dessa palavra depois de anos de instabilidade! O mundo parecia perfeito! Assim foi por um, dois, três meses... Até eu perceber que o mundo estava sem graça. Era com se eu visse um filme mudo em preto e branco depois de já ter experimentado uma superprodução hollywoodiana repleta de efeitos especiais. Foi aí que caí na real que o veneno que tinha usado para enfraquecer a melancolia havia feito isso com todos os sentimentos de uma vez, me esvaziado completamente, e me deixado apenas com a lógica e a racionalidade que sozinhas não erviam para nada... Perceber isso deveria ser alimento pra melancolia e ela deveira voltar com tudo, mas não o foi.

Era como se ela bem como todos os sentimentos estivessem perdidos e que minha missão agora fosse resgatá-los. Tentei de diversas formas, mas escondi tão bem escondido que não conseguia achá-los.

Então, um belo dia (sim, tão escuro e nublado como aquele outro) decidi ir a um parque observar a natureza. Eis que deparo com um pé de goiaba e me lembro de uma história de infância. Não devia ter mais de 6 anos quando fui a uma goiabeira com alguns primos. Logo peguei a goiaba que achei mais bonita e comecei a comê-la. Não demorou muito e apareceu um bicho. Eu me senti culpado de comer a casa daquele bichinho e fiquei olhando pra ele como que pedindo desculpas. Foi nesse momento que meu primo viu a cena, jogou a goiaba no chão, pisou e falou que eu deveria pegar outra já que aquela estava estragada! Toda a felicidade do momento se desfez num tormento de melancolia e raiva, e eu chorei como se o mundo tivesse acabado (afinal de contas havia se acabado praquele bichinho).

A emoção da lembrança foi tão forte que quando voltei a mim estava chorando como aquela criança que um dia fui! Havia recuperado a melancolia, mas, por incrível que pareça, não achava isso bom, e já estava me preparando uma nova punição (foi o que eu disse no terceiro parágrafo). Me levantei do banco possesso de raiva e fiquei qustionando o porquê de tanta "burrice". Foi quando, de repente, num impulso que surge de sabe-se lá onde, lembrei de toda minha história com a melancolia (novamente repeti um trecho do terceiro parágrafo, e a história é essa que acabei de contar).

Que legal, a história se transformou em um círculo! Calma leitor apressado, vou dar finais a esse testamento que Vossa Senhoria teve paciência de ler até agora. Enquanto andava e lembrava de tudo isso e mais um pouco, minha resistência foi diminuindo, até que eu me entreguei e deitei num gramado pra observar aquele céu nublado e escuro que desde sempre me agradara! Uma felicidade inexplicável brotou de dentro de mim, mas não expulsou a protagonista dessa história, apenas estabeleceu uma convivência respeitosa com ela.

Mas por que tamanha felicidade? Bem, simplesmente cai na real que desde criança, desde que eu estava lá no útero de minha mada mãe, ganhei a dádiva de ver e viver o mundo através dos sentimentos. Sim, pode parecer que era só a melancolia ou que ela reinava, mas na verdade ela vinha acompanhada, durante todo esse tempo de felicidade, amor e uma porção de outros sentimentos que me deixavam fazer parte do quadro que era o mundo e da deliciosa arte que era viver!

Da mesma forma que eu me apegava a um desenho na parede ou a um bichinho de goiaba a ponto de sofrer tanto por eles na hora da perda eu me apegava a pessoas especiais, às tarefas que eu me propunha a fazer e à vida de forma geral, e conseguia tirar deles o que de melhor tinham a me oferecer!

Talvez só percebia tudo isso pela ótica da melancolia e talvez por isso tenha julgado-a tanto, mas ela fez parte de todo esse processo e me faz sentir vivo, assim como todos os outros sentimentos!

Como disse no início, hoje choro mas não é só a "malfadada" melancolia que transborda de mim, é uma porção de sentimentos que eu reencontrei e que deixarei que me guiem por todos os dias da minha vida!

Talvez você esteja se perguntando, mas e agora, qual será sua relação com a melancolia? Bom, descobri novas óticas, mas confesso que sou especialista nessa. Ela vai continuar lá, sendo requisitada sempre que preciso até que um belo dia nublado e escuro mude tudo novamente...