domingo, 22 de novembro de 2015

Ré-formulações

O entardecer chegava sob o anúncio do manso apito da maria-fumaça. As galinhas iam vagarosamente se aninhando no poleiro. A Lua, ainda tímida, dava breves sinais de sua majestade noturna. Nesse cenário se encontrava Rogério, escorado na mangueira que plantara quando menino. "Vou plantar essa árvore no topo do mundo!", lembrava das palavras que proferia enquanto cavava um túmulo para a semente que, em poucos meses, se refletiria em vida. Pena que nem todos os túmulos eram iguais... Já se passara exatamente um mês desde que Luan decidira partir para uma viagem de destino imprevisível e sem perspectiva de retorno. "Um ciclo natural", "Eram os planos de Deus", "O tempo irá curar sua dor", foi o que disseram. Que ciclo é esse sem possibilidade de recomeço? Que Deus planejaria levar uma de suas crias aos 23, no auge da juventude? Quanto tempo seria necessário para conter aquele derramamento de lágrimas sem fim? ... Solidão... Era o único paliativo do momento. Perdido em seu santuário e absorto em pensamentos, a dor adormecia e o permitia momentos fugazes de felicidade. Fosse uma tarde juntos arquitetada pela imaginação, ou o primeiro abraço arquivado nas lembranças. Fosse um sonho de ressurreição ou uma visão processada por alucinógenos. Fosse o toque dos lábios simulado pela brisa ou o silêncio total que reinava após uma noite de amor... Quando tudo parecia bem, a realidade chegava cruel e desmoronava os breves momentos de paz. E era exatamente num desses choques de realidade que Rogério se encontrou quando o Sol terminava de se pôr. Juntando esforços inexistentes, ele se levantou pra vislumbrar os instantes finais do astro maior naquele dia. A cada minuto ele se escondia mais um pouco, até sobrarem apenas frágeis raios e então nada. Ao cair da noite, Rogério despencou na verde grama a chorar. Mais uma vez ele presenciara a morte em uma de suas milhares de facetas e já sentia que aos poucos ela ia apoderando-se de si. Malnutrido, desidratado e sem a mínima vontade de prosseguir ele adormeceu, imaginando que encontraria Luan naquela noite, onde quer que ele estivesse. E assim, adormeceu para o que seria seu último sono... Como esperado, lá estava seu amado. Desnudo, com um lindo sorriso e braços abertos para recebê-lo. Enfim havia acabado todo o sofrimento e eles poderiam desfrutar da companhia mútua por toda a eternidade, como profetizaram nas promessas. Inúmeros foram os abraços e beijos do reencontro. Os sentimentos eram a matéria única da nova forma desprovida de corpo físico. Intensos, ardentes, transcendentais! Duas almas sabidamente separadas em outras eras optaram por se unir novamente, desfrutando de todos os prazeres que tiveram em vida. E, no gozo final, ambas se fundiram em uma só, ultrapassando os limites do universo sob uma melodia cósmica perfeita. De repente, veio mais uma vez o silêncio pleno e a escuridão total. Instantes depois, a nova criatura se encontrou no que julgou ser uma compacta caverna marítima, cercada de denso líquido e pegajosas algas. Em um ato de desespero claustrofóbico, encontrou uma estreita passagem e adentrou no que esperava ser a saída daquele terror. Tragado por uma força desconhecida, o corpo, que já parecia físico novamente, deslizou por um longo canal. Uma luz começou a ser vista e um som estridente era ouvido ao longe. Quando o trajeto se encontrava perto do fim, Rogério acordou. Mais uma vez um sonho... A grama estava encharcada, assim como suas roupas, denotando que havia chovido durante a noite. O dia estava claro e o Sol já estava nascendo. Ao levantar e procurar seu inseparável pilão, reparou que a chuva o havia enchido de água. Decidiu beber. Duas mangas maduras, provavelmente derrubadas pela chuva, se encontravam nos arredores. Sem pensar muito, as comeu. Ao final, ficou algumas horas a observar aquelas sementes e tomou a iniciativa de plantá-las. Quando o Sol estava a pino, Rogério respirou fundo e encarou o horizonte. Se deparou consigo mesmo e atinou que a dor ainda estava ali, as lágrimas ainda caiam, as forças não haviam voltado... Porém havia alguma coisa, algo sutil, que estava diferente. Pegou seu pilão e começou a descer, deixando seu santuário para trás. Sem rumo, sem propósito, mas certo que já não pertencia àquele lugar...


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